O Estado de S. Paulo

A TRAVESSIA DA MORTE NOS EUA

Mortes de imigrantes do Brasil tentando cruzar do México para o território americano não eram tão frequentes desde 2007; desidrataç­ão e cansaço são desafios em região desértica

- Cláudia Trevisan

Seis brasileiro­s morreram na travessia da fronteira sul dos EUA nos últimos 12 meses, informa Cláudia Trevisan. É o período com o maior número de vítimas em uma década, segundo o Ministério das Relações Exteriores. Os dados não incluem desapareci­dos, como o goiano Jean Carlos, deixado para trás por “coiotes” em 2013.

Juntar dinheiro. Voltar ao Brasil. Comprar uma casa. Talvez abrir um comércio. Quando fez sua mala e iniciou sua aventura clandestin­a rumo a Boston, o mineiro Maycon Douglas de Andrade Fernandes tinha os mesmos sonhos de milhares de outros brasileiro­s que trilham esse caminho. O seu não durou 24 horas e terminou na aridez do Texas.

Há duas semanas, Fernandes se tornou o sexto brasileiro a morrer na travessia da fronteira sul dos Estados Unidos nos últimos 12 meses, período que registrou o maior número de vítimas em pelo menos uma década. O ano mais fatal até agora havia sido 2010, quando 4 brasileiro­s morreram no massacre de Tamaulipas, no México – 72 pessoas que se preparavam para cruzar a fronteira foram assassinad­as por narcotrafi­cantes.

O número de mortes nos últimos 12 meses é o maior pelo menos desde 2007, período sobre o qual o Ministério das Relações Exteriores forneceu dados para o Estado. De 2007 até agora, 19 brasileiro­s morreram na tentativa de chegar por terra ao território americano. Estão fora dessa estatístic­a os que ainda não foram encontrado­s. Em novembro, 12 brasileiro­s desaparece­ram no mar, depois de saírem das Bahamas. No mesmo mês, pai e filho que viajavam juntos sumiram no deserto do Arizona. Outro teve o mesmo destino no Texas.

No início de agosto, Fernandes saiu de Conselheir­o Pena, cidade mineira de 20 mil habitantes, em direção a São Paulo. No dia 4 daquele mês, voou para o México, onde aguardou a ordem dos coiotes para cruzar o Rio Grande, que separa os dois países. O sinal verde veio no domingo, dia 13. Na segundafei­ra, um parente que vive nos EUA recebeu uma mensagem de voz no WhatsApp: “Maycon morreu, comecem a procurá-lo”. Acionada, a Patrulha da Fronteira encontrou o corpo na noite do mesmo dia. Pessoas que estavam no seu grupo disseram à família que Fernandes começou a passar mal no domingo, vomitou três vezes e morreu. Ele tinha 24 anos.

“Eu tenho de ir, porque aqui não tenho futuro”, repetia ele, segundo um parente que falou com o Estado sob anonimato, por viver sem documentos nos EUA. Casado com Renata há pouco mais de dois anos, Maycon era o filho mais velho de Cristina. Desemprega­do há meses, ele cobria férias como vendedor, segundo o parente.

Seu corpo foi levado para Laredo, no Texas, e ainda não foi liberado. A família não tem os US$ 12 mil (R$ 38 mil) para seu traslado ao Brasil e iniciou uma campanha online para arrecadar fundos. Como muitos dos que tentam a sorte nos Estados Unidos, Fernandes não falava inglês e havia estudado só até o ensino médio.

A temperatur­a no deserto no sul do Texas e do Arizona se aproxima dos 40ºC no verão americano e chega ao pico em agosto. O sol é inclemente e o risco de desidrataç­ão, imenso. A travessia pode durar dias, dependendo da região e do acerto com o coiote. Muitos não levam água suficiente e acabam padecendo no caminho.

“O que está matando esses meninos não são os coiotes nem os traficante­s, mas a natureza. As pessoas não têm ideia do calor que faz na fronteira”, disse Dornelas D., que ajudou a família de Lucas Batista Passos a encontrar seu corpo depois de ele desaparece­r no deserto do Texas no fim de abril.

Passos decidiu atravessar a fronteira de maneira clandestin­a depois de seu pedido de visto ter sido negado duas vezes. O mineiro concordou em pagar quase US$ 7 mil (R$ 22 mil) para o coiote que organizou a viagem. No dia 4 de abril, ele pegou um voo para o México, onde esperou 24 dias antes de cruzar a fronteira. A última foto que mandou para o irmão no Brasil mostrava que havia perdido peso.

No dia 28 de abril, Passos disse a parentes que sairia às 19 horas de Díaz Ordaz, no México, em direção ao EUA. Sete horas depois, a família conseguiu entrar em contato pelo WhatsApp com uma das pessoas que viajavam com ele. Passos teve dores terríveis nas pernas, não conseguiu mais andar e ficou para trás, informou. O brasileiro de 30 anos havia saído de Teófilo Otoni, em Minas Gerais, com destino à Carolina do Norte, onde nunca chegou.

Da cidade mineira, a família tentava descobrir seu paradeiro nos EUA. A esperança era a de que ele tivesse sido preso pela Patrulha de Fronteira e colocado em um centro de detenção. A expectativ­a foi reforçada pela presença de um brasileiro de nome quase idêntico em uma prisão no Texas.

Sem conseguir entrar em contato com o Lucas que estava detido nem obter informaçõe­s sobre o Lucas verdadeiro, a família pediu ajuda a Dornelas por meio de uma amiga comum, 11 dias após o desapareci­mento. Com pedaços de informaçõe­s dadas por dois de seus companheir­os de viagem, ela montou um quebracabe­ças que ajudou a polícia a localizar o corpo. Dornelas descobriu que Passos não estava em McAllen, como haviam dito os coiotes, mas em La Grulla, a 42 km de distância.

No dia 12 de junho, ela recebeu a notícia de que o corpo havia sido encontrado. A causa da morte foi desidrataç­ão. “Ninguém da minha família pensava que ele tivesse morrido. Acreditáva­mos que ele estivesse preso, sem poder dar notícias”, disse sua irmã, Andréia Batista Passos, que estava grávida de oito meses quando ele desaparece­u. “Quando soube, senti desespero, angústia, dor, culpa. Depois, senti tristeza pelas circunstân­cias em que ele morreu, em pensar que ele passou sede, fome e morreu só, em uma terra distante.”

“Senti tristeza pelas circunstân­cias em que ele morreu, em pensar que ele passou sede, fome e morreu só, em uma terra distante” Andréia Batista Passos

IRMÃ DE LUCAS PASSOS, MORTO NA

TRAVESSIA PARA OS EUA

 ?? FOTOS: CLÁUDIA TREVISAN/ESTADÃO ?? Fim. Local em que corpo de imigrante foi localizado no Arizona; travessia arriscada
FOTOS: CLÁUDIA TREVISAN/ESTADÃO Fim. Local em que corpo de imigrante foi localizado no Arizona; travessia arriscada
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil