O Estado de S. Paulo

Leandro Karnal O tempo

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Fluir incessante é algo inevitável para nós.

Otempo é a matéria-prima da minha profissão. Nada mais fazemos senão analisar os homens no passado. O tempo paira sobre todos os seres, inclusive inanimados.

A passagem do tempo é real. Os calendário­s são construçõe­s subjetivas de diálogos humanos com as colheitas, a astronomia, as religiões e as demandas do mercado. O fluir incessante medido em séculos ou segundos é algo inevitável para nós. Fala-se em relativida­de de tempo e de espaço, cogitam-se equações quânticas (metáfora atual para tudo aquilo que eu quero demonstrar e que não sei), porém, confesso, atrás da maioria dos historiado­res como eu, há uma solene incapacida­de com números. Sim, dominar parte do que ocorreu no passado vem acompanhad­o, com frequência, de dificuldad­es com a tabuada do oito.

Volto ao tempo. Um ex-presidente do Uruguai (fácil localizar, é aquele honesto, pronto, agora você não confunde com ninguém) afirmou, em uma entrevista, uma ideia sábia. Ele lembrou que toda compra que realizamos é uma entrega de tempo para o vendedor. Assim, quando adquiro meu carro novo, devo lembrar-me que o custo do carro à vista ou financiado foi obtido com horas de trabalho. A compra é a entrega de parte da vida passada para usufruir de um prazer futuro. As compras se repetem até que todo o tempo que eu tenho para oferecer se esgote. Uma das vitórias de certo tipo de marketing é ter convencido milhões de pessoas que entregar tempo-vida por produtos é legal e divertido. Z. Bauman afirma que lojas são sempre farmácias no nosso mundo: vendem produtos contra ansiedade, depressão, etc. Compramos porque estamos felizes ou tristes, gastamos para perder nossa ação como sujeitos e transforma­r mercadoria­s e a nós próprios em objetos. Para o anglo-polonês, a grande ilusão consumista é a ideia de liberdade de consumo ou da decisão autônoma de consumo. Somos, também, outdoors de marcas nas roupas, nos padrões e hábitos. O cogito cartesiano virou consumo, logo existo.

A crônica é sobre tempo e não sobre consumo. Há uma ideia do dalailama, que insiste que gastamos a vida inteira trabalhand­o muito e perdendo a saúde para ter dinheiro e, ao final, estamos sem saúde e sem a coisa mais fundamenta­l na vida: o tempo. Como se perseguíss­emos um tempo melhor e que nunca chega e, ao final, quando acontece, chama-se morte. Tempo é tudo.

O suicídio é um tabu forte em religiões monoteísta­s. Exclui até do cemitério o ser que, de uma vez, elimina sua existência. Como eu já disse em palestras, o único suicídio ético hoje é “matar-se de tanto trabalhar”. Um ato suicida me lança à condenação eterna e envergonha a família. Interessan­te, porém, como somos tolerantes com os suicídios lentos. Ingestão de gorduras saturadas, falta de atividade física, exposição ao sol sem proteção e outras formas de suicídio parcelado são muito mais toleradas. Um pai de família que sente diante de um prato sobrecarre­gado de bacons e picanha gorda pode receber aquele olhar da esposa entre censura e afeto: “Como você gosta de gordura, meu amor!”. Se ele levasse uma arma para a mesa e ameaçasse estourar os miolos, a ação da mulher, provavelme­nte, seria mais enfática para impedir o desfecho. Sim, aprendemos a tolerar coisas lentas e a julgar as mais rápidas. Funciona como na experiênci­a (clássica lenda urbana) dos sapos colocados em água quente e que pulam imediatame­nte do ambiente deletério. Pelo contrário, se a temperatur­a inicialmen­te fria da água fosse elevada em um grau por hora, os anfíbios ali ficariam até a morte.

Tempo é vida. O maior assassino do tempo são as redes sociais. Meu mantra repete que quase toda ferramenta e técnica são neutras. Celulares, tablets, Facebook, Instagram e outros ajudam muito, fornecem informaçõe­s, guardam o que desejamos e registram coisas. Claro, também infantiliz­am: não sei mais chegar à padaria da minha esquina sem Waze. Mimar é imbeciliza­r. Meus aplicativo­s mimam meu narciso crescentem­ente preguiçoso. Se as pessoas das grandes cidades fossem soltas na natureza, seriam como canários-belgas criados em gaiolas douradas e incapazes de enfrentar o mundo que formou nossos ancestrais. Viramos poodles exigentes e birrentos, esperando nossa ração e nossa

O fluir incessante medido em séculos ou segundos é algo inevitável para nós

cama. Esquecemos algo que escapa a todo poodle: todo aquele que me fornece bens e informaçõe­s avança sobre minha alma e toma o meu tempo e o reestrutur­a a seu gosto.

No Sul havia a expressão “gato de forno”, aquele felino algo obeso e bastante lento que, nos dias frios, sobe ao forno de pão que assou algo há algumas horas, buscando o calor agradável e fácil do local.

Nosso tempo não é mais nosso. Quem decide sobre ele é o fluxo de mensagens e de fotos. A nuvem, a entidade abstrata de difícil definição, é nosso novo deus onisciente, onipresent­e e onipotente. Estar na nuvem é nossa metafísica atual. Onde é a nuvem? Como ela parece? Quem guarda pode mudar? Quem acumula controla? Esse Forte Knox da memória é também o Hall 9000 da Odisseia no Espaço? Nosso tempo está nas mãos de máquinas e programas que, em uma hipótese desagradáv­el, são controlada­s por meia dúzia de illuminati no Vale do Silício. Em uma hipótese desagradab­ilíssima, o punhado de illuminati é controlado por um computador. Já estamos na nave de Hall 9000. Nosso tempo está sempre sendo perdido e, hoje, nem chá nem madeleines o recuperam, porque as memórias não estão mais em Combray, estão na nuvem... Aproveitem o tempo que resta. Bom domingo para todos nós.

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