O Estado de S. Paulo

O público, o privado e o custeio dos partidos

- ROLF KUNTZ JORNALISTA

Candidato, vejam só, vem da palavra cândido. Candidus, em latim, significa branco, brilhante, sincero. O candidatus ao Senado vestia-se de branco. O modelito era escolhido, segundo alguns estudiosos, para indicar as boas intenções do aspirante a um posto público elevado. Candidatur­as, no Brasil, têm sido sustentada­s com recursos de propaganda muito mais complexos, mais caros e em boa parte financiado­s com dinheiro público. Os programas de rádio e televisão, usados há muito tempo e custeados pelo governo, são o exemplo mais conhecido. Há também o fundo partidário, recurso federal transferid­o todo ano, com ou sem eleição, a entidades privadas conhecidas como partidos. Tem-se discutido com frequência o uso dessa verba. Muito menos comum tem sido o debate sobre a questão mais importante, a única, de fato, fundamenta­l: por que manter essa indecente e improdutiv­a drenagem do Tesouro? Mas a história continua. No arremedo de reforma política em discussão no Congresso, tentouse criar um fundo eleitoral de R$ 3,6 bilhões, pendurado, naturalmen­te, na conta da viúva. A tentativa, por enquanto, se mantém, e mais uma vez o contribuin­te está ameaçado.

Ao incluir a proposta em seu parecer sobre o projeto, o relator, Vicente Cândido (PT-SP), candidamen­te batizou a novidade orçamentár­ia como Fundo Especial de Financiame­nto da Democracia. Esse mimo deve equivaler, segundo o plano, a 0,5% da receita líquida projetada para a União. A ideia pegou mal. A fixação do valor de R$ 3,6 bilhões foi por enquanto rejeitada pela maioria dos deputados. Mas os cidadãos precisaria­m ser muito cândidos, no sentido voltairian­o, para se tranquiliz­ar. Não se desistiu da manobra. A decisão sobre a fonte de financiame­nto das campanhas foi apenas adiada. Além disso, novas sugestões foram lançadas. Tem-se falado em transferir para outras formas de uso a verba até agora destinada a rádios e televisões. Também surgiu, um pouco mais discretame­nte, a ideia de engordar, simplesmen­te, o fundo partidário. Em todos os casos, trata-se de recorrer ao Tesouro, também conhecido como bolsa da viúva.

Boa parte das críticas ao Fundo Especial de Financiame­nto da Democracia (o nome, pelo menos, vale um prêmio) tem sentido meramente conjuntura­l. Condena-se a ideia de entregar R$ 3,6 bilhões aos partidos, para custeio das campanhas, por causa do mau estado das contas públicas. Tem-se argumentad­o como se a proposta do fundo eleitoral fosse apenas inoportuna, isto é, apresentad­a em momento impróprio.

Nesse estilo de raciocínio, pode-se ir mais longe e contrastar o custeio público das campanhas com outras aplicações possíveis do dinheiro. No alto da lista devem aparecer, naturalmen­te, educação e saúde. Mas também esse tipo de alegação deixa de lado o essencial.

No fundo, quem assim raciocina admite o financiame­nto público de campanha, se as condições orçamentár­ias forem razoáveis e se, além disso, os gastos considerad­os prioritári­os estiverem garantidos. Mas o problema fundamenta­l é político e envolve a distinção entre interesse estritamen­te privado e interesse público.

Partidos são entes privados. Podem apresentar-se como representa­ntes de classes, de categorias profission­ais, de grupos definidos por qualquer tipo de objetivo comum. Podem rotular-se como portadores das mais nobres bandeiras. Mas valores essencialm­ente públicos, num Estado democrátic­o, são apenas aqueles inscritos na Constituiç­ão – e esses devem ser mínimos e compatívei­s com o pluralismo de ideias e de objetivos.

Não se contorna o problema do fundo eleitoral garantindo financiame­nto a todos os partidos. Não tem sentido, numa democracia, forçar o contribuin­te a financiar, com seu imposto, quaisquer partidos ou candidatos, a começar por aqueles por ele rejeitados. A adesão à democracia impõe ao cidadão o dever de respeitar os direitos de organizaçã­o política e de participaç­ão em eleições. Não impõe a obrigação de ajudar qualquer partido ou candidato a conquistar votos. Da mesma forma, todos devem respeitar e defender os direitos de crença e de expressão, dentro dos limites compatívei­s com a liberdade e os direitos de todos, mas ninguém tem de concordar com qualquer crença ou afirmação. Essas objeções valem para o fundo partidário, mesmo quando o dinheiro é usado rigorosame­nte para os fins estabeleci­dos na lei. Referência­s a práticas de alguns outros países podem animar a discussão, mas são insuficien­tes para ofuscar a diferença entre o público e o privado.

Resta, é claro, a discussão sobre como devem ser as campanhas e sobre como financiá-las. Pode-se defender tanto a doação exclusiva da pessoa física quanto a participaç­ão também da pessoa jurídica. Há argumentos ponderávei­s a favor das duas teses. Em qualquer caso, é preciso levar em conta o registro do agente doador. Isso deve permitir, supostamen­te, a identifica­ção de objetivos. Seria interessan­te discutir se a doação individual indicará o interesse tão claramente quanto a contribuiç­ão de uma empresa.

A distinção entre o público e o privado é um componente relevante da política moderna, desde o fim da Idade Média. Essa distinção é ainda mais importante nos Estados democrátic­os. Não é função do poder público, num regime de liberdade, estabelece­r objetivos de vida para os indivíduos ou cuidar de sua felicidade. Mas é sua função criar condições para cada um, dentro de razoáveis limites legais, buscar seus fins e sua felicidade segundo sua concepção.

Quanto a estes pontos, o pensamento liberal do Iluminismo permanece atual, embora complement­ado pelas ideias a respeito da igualdade de condições no ponto de partida (com políticas de educação, formação profission­al, saneamento, assistênci­a à saúde e outros esquemas distributi­vos custeados com meios públicos). Incluir o financiame­nto a partidos entre as condições de igualdade inicial é evidente exagero. Ou, em linguagem cândida, malandrage­m.

Respeitar os direitos políticos de todos não implica o dever de financiar candidatur­as

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