O Estado de S. Paulo

Evidências, narrativas e civilizaçã­o

- MURILLO DE ARAGÃO ADVOGADO, CONSULTOR, CIENTISTA POLÍTICO, É DOUTOR EM SOCIOLOGIA PELA UNB

Não temos dúvidas: para o bem e para o mal, a Operação Lava Jato cumpre uma missão que extrapola os limites do Judiciário. Talvez, até mesmo, resgatar o curso de nosso processo civilizató­rio. Não sem tempo, já que, se a política não se renova nem se recupera, alguém tem de fazer isso. Poderia ser pior – por exemplo, um golpe bolivarian­o, uma revolução bolcheviqu­e ou um golpe militar clássico.

No entanto, o seu curso é afetado por algumas obsessões, açodamento­s, ativismo e pela busca da narrativa perfeita. Alguns dos procurador­es acreditam que somente com a narrativa redonda será possível fazer a transforma­ção que almejam. Uns creem nisso por idealismo; outros, por interesse próprio. No entanto, não precisamos apenas de narrativas perfeitas. Precisamos do império da lei e de que esta seja aplicada de forma clara e justa. Sem cadáveres de mentira nem denúncias “tabajaras”.

Por isso, como em alguns casos os cadáveres ainda não existem e as narrativas não se completam, o Brasil segue em suspense. Vivendo das teses do “não é possível” que não vá aparecer a bala de prata. A delegada Graziela Machado da Costa e Silva, em relatório ao Supremo Tribunal Federal (STF), afirmou que a delação do expresiden­te da Transpetro Sérgio Machado sobre alguns políticos carecia de provas. Ou seja, segundo a Polícia Federal, neste caso não há “cadáveres” a enterrar. Tal constataçã­o quebrou a narrativa que amparava o acordo de delação de Machado, que está “asilado” em sua mansão.

O Tribunal Regional Federal da 4.ª Região (TRF-4), em nome do bom direito, revogou a condenação do ex-tesoureiro do PT João Vaccari Neto, notório por carregar caixa 2 em sua mochila. Ele foi absolvido de uma das acusações porque a delação que o condenou na primeira instância não vinha acompanhad­a das provas devidas. Ou seja, faltava o cadáver que justificas­se a narrativa pretendida (ainda que, no caso de Vaccari Neto, em razão de sua extensa ficha de serviços prestados de coleta de recursos para o seu partido, não devam faltar outras evidências).

Em relação ao ex-senador Delcídio Amaral, rumores na imprensa – que devem ser observados com cautela – apontam que o acordo também carece de “cadáveres”. Pior é que algumas alegações não apenas vieram desacompan­hadas de provas, como também foram desmentida­s cabalmente ao longo do processo.

Assim, a prudência, o bom senso e o bom direito recomendam cautela adicional nos acordos de delação após as inconsistê­ncias verificada­s nos casos de Vaccari Neto, Sérgio Machado, Delcídio Amaral e no polêmico acordo com os irmãos Batista, da JBS. A caça às bruxas, afinal, deve capturá-las, e não apenas ficar vagando numa “dimensão Roswell”.

Com relação a Eduardo Cunha e Lucio Funaro, o objetivo é claro. Querem o presidente Michel Temer. Não importa o que possam revelar sobre outros crimes. Se “entregarem” Michel Temer com provas “cabrais”, não apenas cabais, será a glória suprema. O problema é que, so far, as tais provas não têm aparecido. E, sem elas, a questão fica meio em banhomaria. Talvez não queiram repetir o erro da rejeitada denúncia de corrupção passiva contra Temer, que gerou mais luz do que calor e prestou um desserviço à Operação Lava Jato.

Em se tratando de um presidente da República, as questões devem ser abordadas com o redobrado cuidado, por causa das evidentes repercussõ­es na sociedade e na economia. Não se trata de proteger o crime, mas de buscar precisão na investigaç­ão e na denúncia. Afinal, a denúncia impediu o avanço da reforma previdenci­ária.

A imprecisão na condução do episódio JBS prestou o desserviço de pôr em xeque as delações premiadas, levar a discussão sobre estas para o Supremo Tribunal Federal e colocar dúvidas sérias sobre o que foi acordado com o empresário Marcelo Odebrecht vis-àvis o que se resolveu com os irmãos Batista. Enfim, a história dos irmãos Batista e a denúncia “tabajara” contra Temer não são o melhor episódio da Procurador­ia-Geral da República (PGR), apesar de toda a importânci­a dada a algo potencialm­ente sério. Aliás, sem a consequent­e prova de que Temer recebeu vantagem, a denúncia não passa de um flato. É muito barulho por nada.

O que fazer? O melhor dos mundos seria o STF trabalhar em sua agenda dentro dos marcos legais e constituci­onais e sem ser pautado pela midiatizaç­ão do processo. Temos mais de uma centena de políticos a serem condenados em processos que rolam há anos a fio. Ao invés de buscar novos cadáveres, o ideal seria começar por enterrar os que devem ser enterrados ou tirá-los do limbo dos mortos-vivos devidament­e absolvidos. O mesmo vale para a PGR, que, no afã de perseguir Temer, se esqueceu da ex-presidente Dilma Rousseff e do ex-ministro Aloizio Mercadante, por exemplo.

Não podemos ficar no suspense do suspense, no que chamei de “dimensão Roswell”, destruindo de antemão reputações que devem ou não ser destruídas pelo devido curso legal, e não pela midiatizaç­ão da Justiça. O pior é que a ênfase no oba-oba e o tratamento “samba-canção” dado a denúncias já em curso provocam caos na política e imensas incertezas sobre 2018. E acabam dando tempo para que se costurem paliativos para salvar alguns dos zumbis.

Ora, no fim das contas, queremos justiça ou queremos apenas preencher uma narrativa? Claramente, ambos são os objetivos, até mesmo pelo fato inconteste de que as narrativas têm efeito pedagógico no combate ao crime. Porém, narrativas inconsiste­ntes, justiça a qualquer preço, denúncias “tabajaras” e midiatizaç­ão da Justiça pelo simples desejo de aparecer não trabalham a favor do País nem da cidadania. Não é o que queremos para salvar o projeto civilizató­rio de nossa nação.

Em vez de buscar novos cadáveres, o ideal seria enterrar os que já devem ser enterrados

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