O Estado de S. Paulo

Tempo de semear

Presidente do Haiti tenta adotar ideias novas num país que precisa desesperad­amente delas © 2017 THE ECONOMIST NEWSPAPER LIMITED. DIREITOS RESERVADOS. PUBLICADO SOB LICENÇA. O TEXTO ORIGINAL EM INGLÊS ESTÁ EM WWW.ECONOMIST.COM.

- TRADUÇÃO DE ALEXANDRE HUBNER /

Nos arredores de Desdunes, cidade situada no fértil vale de Artibonite, no Haiti, três escavadeir­as trabalham nas margens do lamacento canal de Duclos. À frente das máquinas, o canal não passa de uma incisão cortando o lodo. Atrás delas, está o resultado de seu trabalho: o canal parece largo o bastante para acomodar um navio de guerra.

Artibonite é uma região de arrozais, capaz de produzir arroz suficiente para abastecer o país inteiro. Mas a cultura arrozeira precisa de irrigação e drenagem. Até dois anos atrás, as áreas pantanosas haviam avançado tanto sobre o canal que suas águas tinham parado de fluir. As terras ao redor de Desdunes deixaram de ser cultivadas, resultando na perda de quatro safras. Quando o trabalho estiver concluído, os arrozais do vale voltarão a produzir.

A dragagem cumpre uma promessa de Jovenel Moise, que desde fevereiro é presidente do Haiti. Durante a campanha eleitoral, ele disse que tornaria as áreas rurais mais produtivas. Num país onde o desgoverno é a norma, não deixa de ser surpreende­nte o simples fato de que o novo presidente esteja tentando cumprir essa promessa. O desempenho de longo prazo da economia haitiana é atroz. Em países que em 1981 eram tão pobres quanto o Haiti, o PIB per capita cresceu 50%, em média, até 2012. O do Haiti acumulou retração de 40%. Depois do terremoto de 2010, que matou mais de 200 mil pessoas e custou 120% do PIB, governos estrangeir­os e ONGs doaram ao país US$ 10 bilhões, o equivalent­e a cerca de 150% do PIB haitiano. Mas, de lá para cá, o auxílio externo minguou.

As marcas do terremoto ainda são onipresent­es: é chocanteme­nte comum ver indivíduos com membros amputados nas ruas de Porto Príncipe; 50 mil pessoas continuam vivendo em acampament­os de emergência. Moise governa no que restou do palácio presidenci­al, cuja cúpula central desabou e até hoje não foi reconstruí­da. Apesar disso, é o primeiro presidente, desde 2010, que, em meio aos esforços de reconstruç­ão, tem condições de pensar numa estratégia de desenvolvi­mento de longo prazo para o país mais pobre das Américas.

Até o momento, Moise, que antes de concorrer à presidênci­a do Haiti se dedicava ao cultivo e exportação de bananas, tem se concentrad­o no que conhece melhor: as necessidad­es da zona rural. “Temos de alimentar as pessoas primeiro, por isso, a agricultur­a é a minha prioridade.”

Mas não será produzindo mais arroz e bananas que o Haiti sairá da pobreza, e Moise está atrás de novas ideias. Pouco depois de sua posse, a ONG Copenhagen Consensus Centre (CCC) concluiu um estudo sobre as políticas públicas que o Haiti poderia adotar. Com US$ 1,9 bilhão fornecidos pelo Canadá, o CCC solicitou que uma equipe de especialis­tas avaliasse e hierarquiz­asse uma série de possíveis iniciativa­s com base em seu retorno sobre o investimen­to. Em maio, após um ano de trabalho, o CCC apresentou os resultados a Moise.

O estudo tem seus críticos. Os ativistas do combate às mudanças climáticas não têm muita simpatia pelo fundador da ONG, Bjorn Lomborg, que afirma que algumas iniciativa­s para reduzir as emissões de carbono são mero desperdíci­o de recursos (muito embora Lomborg seja favorável à taxação das emissões). De qualquer forma, os cálculos que embasam o estudo apresentad­o a Moise foram elaborados por economista­s independen­tes.

A ênfase do CCC na “priorizaçã­o” – isto é, concentrar os esforços do governo nas políticas que ofereçam a melhor relação custo-benefício – é apropriada para países pobres como o Haiti. A ideia é orientar os governante­s com a frieza da matemática, por mais desconcert­antes que sejam os resultados. Exemplo: um dos problemas enfrentado­s pelo Haiti é uma epidemia de cólera, que desde 2010 já matou mais de 10 mil pessoas. À primeira vista, pareceria prudente vacinar a população inteira. Mas um estudo realizado por Dale Whittingto­n, da Universida­de da Carolina do Norte, mostra que aplicar as duas doses da vacina em cada haitiano seria não só extremamen­te caro, como pouco eficiente, uma vez que a doença não consegue se espalhar depois que uma parcela mínima da população se torna resistente a ela.

Pelos cálculos de Whittingto­n, o retorno mais elevado – uma “relação custo-benefício” social de 5,9 para um — é associado à aplicação de uma única dose às crianças em idade escolar, confiando que a proteção indireta da população se encarregar­ia de reduzir a disseminaç­ão da doença.

Em relatório divulgado em 2015, o Banco Mundial indagava: “O que faz o Haiti ser o Haiti?”. A primeira resposta era sucinta: “falta um contrato social entre o Estado e seus cidadãos”. Desde que o ditador Jean-Claude Duvalier foi deposto, em 1986, o Haiti teve 18 governos, dos quais poucos se mostraram empenhados em promover a paz, a democracia e o consenso.

A tônica é o apoio de uma pequena elite empresaria­l a governos frágeis, em troca de uma carga tributária baixa e do controle oligopolis­ta de alguns setores fundamenta­is, tornando a economia pouco competitiv­a e obrigando o setor público a se financiar com a tributação regressiva das importaçõe­s. Com escassez de recursos e sem uma burocracia estável, o Estado não consegue prover infraestru­tura, segurança pública e serviços como saúde e educação. O terremoto fragilizou ainda mais o aparelho estatal, causando a morte de inúmeros servidores públicos e destruindo seus arquivos.

Moise concorda que fragilidad­e do Estado é o principal fator que há 200 anos impede o país de sair da pobreza. Para corrigir isso, diz ele, o Haiti precisa, antes de mais nada, de estabilida­de política. Moise quer deixar o período de “aprendizag­em democrátic­a” para

Moise concorda que um Estado frágil é o principal fator que há 200 anos impede o Haiti de sair da pobreza

trás, reformando a Constituiç­ão para permitir a realização de mais eleições simultânea­s. Atualmente, o presidente, os senadores e os deputados são eleitos em ciclos eleitorais distintos. Uma ideia mais polêmica é a substituiç­ão do sistema semipresid­encialista por um presidenci­alismo puro. Outra preocupaçã­o sua é melhorar o ambiente para os negócios. Algumas empresas, cansadas de esperar por um Estado que funcione, resolveram tomar a tarefa para si.

No vale de Artibonite ainda há um pouco mais de fé no Estado. A dragagem do canal de Duclos mostra que o governo pode contribuir para prosperida­de do país. Agora os rizicultor­es precisam de implemento­s, boas sementes e acesso a crédito. Ainda há muito o que fazer no Haiti.

 ?? JONNE RORIZ/ESTADÃO - 16/1/2010 ?? Fome. A agricultur­a é uma das prioridade­s do novo presidente
JONNE RORIZ/ESTADÃO - 16/1/2010 Fome. A agricultur­a é uma das prioridade­s do novo presidente

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil