O Estado de S. Paulo

Pra não esquecer

- UGO GIORGETTI

Tenho um pedido público a fazer e não sei exatamente a quem. Há um documentár­io, ou talvez sejam vários documentár­ios, que contém uma cena que me acompanha por décadas e agora já não suporto mais, dadas as circunstân­cias desse nosso País. Não suporto mais aquela multidão reunida no centro de São Paulo agitando bandeiras e entusiasmo, gritando, reivindica­ndo e dançando enquanto Sócrates e Osmar Santos lhes dirige a palavra. Não suporto mais ver que no futebol de apenas 30 anos atrás havia personagen­s que se importavam com os destinos do País e de como as coisas andavam.

Havia personagen­s regiamente pagos que arriscavam seus grandes salários, suas posições privilegia­das, porque não suportavam não participar da vida da nação em momentos em que lhes parecia que fossem necessário­s.

Não vou nem mesmo falar nos políticos que também no palanque falavam ao delirante auditório e pediam “Diretas Já”. Não vou lembrar a qualidade deles, até porque esta coluna é de esporte e é sobre ele que devo falar.

Antes, porém, quero encerrar meu pedido para que seja poupado desse documentár­io que me aflige penosament­e. Não quero mais vê-lo para que não seja forçado a olhar para os dias de hoje, nos quais jogadores campeões do mundo, ídolos brasileiro­s, não hesitam em se inclinar diante de qualquer governo de plantão, não hesitam em exibir suas posições interessei­ras e subalterna­s diante de toda a nação.

Poderiam ao menos não tomar partido. A omissão muitas vezes é uma boa posição ou, pelo menos, não a pior.

Mas não, desfilam e se deixam fotografar, isto é, deixam que sua imagem seja explorada por qualquer político, desde que ocupando algum cargo.

Enquanto isso o incômodo documentár­io me mostra o doutor Sócrates e Osmar Santos falando para todas as torcidas e em nome de todos os torcedores. Isso foi ontem, historicam­ente foi ontem, mal aconteceu, e parece não ter nunca acontecido. Procuro em vão algum parentesco com o que vejo hoje e nada encontro. Não estou exigindo de outros um heroísmo e coragem que talvez eu mesmo não tenha. Mas alguma coisa, um gesto, um muxoxo, esgar de desprezo, um simples sinal de quem sabe que a coisa não vai bem.

Não quero outro Sócrates e Osmar, sei que isso é quase impossível em qualquer época, mas uma pequena reação já me consolaria. No festival de lugares-comuns, de declaraçõe­s inócuas, de frases feitas, e malfeitas, que se tornaram as entrevista­s, onde perguntas e respostas revelam a mesma cruel mediocrida­de, é quase impossível desvendar a que mundo pertencem, de que sociedade fazem parte as pessoas que estão falando. Não se trata também de esperar declaraçõe­s de determinad­o viés político, pelo menos algum que combine com o meu. Se trata de saber se existe alguma ideia seja de que matiz ou coloração for. Ideias são para serem debatidas não importa a origem, desde que expressas em alto e bom som. Mas não há nada, só silêncio. Mesmo movimentos sem muito viés político, apenas e tão somente movimentos de classe, hoje estão abandonado­s e liquidados.

É triste ver Paulo André, ainda jogando pelo Atlético-PR, cumprindo seu dever em campo calado, silencioso, como seu falecido movimento Bom Senso. Ou outros atletas que fizeram parte dessa última ilusão, como Prass, também em seu canto quieto, talvez conformado.

Imagens são perigosas. Você está quieto em casa sem fazer nada, sem querer pensar em nada, principalm­ente após o noticiário da noite, quando, de repente, ao percorrer canais da TV ao acaso, se vê de frente com velha cena e nela estão Sócrates e Osmar Santos, jovens, entusiasma­dos, inflamados, nobres. E bate uma tristeza, ou será saudade?

DOMINGO, 27 DE AGOSTO DE 2017

Não quero outro Sócrates e Osmar Santos, sei que isso é impossível

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