BORGES DECIFRADO POR AMIGOS
A diversidade e a complexidade do pensamento de Jorge Luis Borges (1899-1986) ainda encantam os pesquisadores, que buscam desvendar seus escritos. Sua paixão pela escrita era soberana, assim como a admiração e até devoção por outros autores. Tal consideração faz refletir sobre o papel da biblioteca e da enciclopédia em sua vida e obra. Foi o que motivou Jorge Schwartz, professor da USP e profundo conhecedor da obra borgiana, a organizar o volume Borges Babilônico
– Uma Enciclopédia. Trata-se de uma portentosa coleção de mais de mil verbetes sobre a produção literária de Borges, escritos por mais de 60 colaboradores – entre eles, nomes ilustres como Beatriz Sarlo e Ricardo Piglia. Sobre o trabalho, Schwartz fala a seguir.
• Borges era melhor leitor que escritor? Temos de diferenciar aquilo que ele Borges lia daquilo que nós lemos. Ou seja, sim, pode ser que a fruição da leitura em Borges, como ele sempre afirmara, fosse maior que a da escrita. Mas pode ser que seja mais uma boutade. Em todo caso, para um sistema em que a literatura se alimenta da literatura (isto já começa com Dom Quixote), não teria sido possível produzir o que ele criou sem as suas leituras. Ler Borges é ler também uma infinidade de autores e referências, que Borges Babilônico tenta cobrir, mesmo parcialmente.
O amor ocupou um bom lugar em sua vida, mas pouco em sua obra. Isso explica as poucas referências ao amor nos verbetes? Uma pergunta delicada. Sim, Borges viveu enamorado durante praticamente toda a sua existência. A última paixão, sua viúva María Kodama, merece um verbete no dicionário. A pergunta é pertinente. O único conto em que o amor entre um homem e uma mulher se realiza é Ulrica (O Livro de Areia). O contrário é a visão nunca positiva a respeito das mulheres. Beatriz Viterbo, em El Aleph, é o estereótipo de ‘la belle dame sans merci’; ela e Emma Zunz são heroínas negativas em que o amor não se realiza. No conto A Intrusa (O Informe de Brodie), o amor de dois irmãos pela heroína os leva ao seu sacrifício. Quando digo que sua pergunta é delicada, é algo de caráter pessoal e íntimo, relatado de forma metafórica em A Seita da Fênix (Ficções). Neste conto, a personagem central, que poderia ser Borges, parece ter sido excluído dos rituais atribuídos à reprodução da espécie. Uma das frases memoráveis encontra-se no conto Tlön Uqbar orbis tertius (Ficções): “os espelhos e a cópula são abomináveis porque multiplicam o número dos homens”.
Por causa do problema de visão, o que importava eram as sensações?
Mais do que as sensações, fundamental para qualquer escritor, acho que o mais importante em Borges era a prodigiosa memória: das diversas literaturas, das múltiplas histórias, de registros vivenciados. Essa memória foi motivo de paródia, no conto Funes, o Memorioso (Ficções), que de tudo lembrava. Sem filtros, os fatos relevantes se nivelam “por baixo”, com os detalhes irrisórios. Se Ireneo Funes é dotado de memória perfeita, por sua vez ele é desprovido da capacidade de raciocínio e condenado ao não esquecimento. Não poderia haver maior ironia nem punição.
Em Borges, a essência e o significado do tempo e a materialidade do mundo objetivo são especulações que desde cedo dominaram seu trabalho. Como ele enfrentava essa angústia do tempo? Essa pergunta entra em um dos temas mais caros a Borges, o tempo e sua subjetividade assim como o da relatividade. Dois verbetes se tornam obrigatórios no Borges Babilônico: “tempo”, de Hernán Nemi, e “matemáticas”, de Inés Azar. O que posso afirmar é que Borges esteve muito antenado com diversas teorias matemáticas e com a Teoria da Relatividade. Se o tempo foi um fator de angústia, Borges provavelmente o resolvia por meio da literatura. Heráclito é um dos primeiros filósofos que aparecem em sua poética e, no belo poema sobre o filósofo grego, ele cita que “Ninguém desce duas vezes às águas / Do mesmo rio”. A revelação da angústia pela consciência do tempo nas ficções borgianas se resolve com intrigas em que todos os tempos são possíveis: o linear, o do eterno retorno e tempos diferentes convivendo na simultaneidade, inclusive o tempo subjetivo do sujeito, como se dá no magnífico conto fantástico O Milagre Secreto (Ficções). Nesse sentido, não há nenhuma predileção por um sistema temporal, mas pode ser que a irreversibilidade do tempo “real” em Borges fosse um fator de angústia, como o é para todo ser humano.
Enciclopédia reúne termos usados pelo autor argentino em mais de mil verbetes assinados por seus pares, escritores e pesquisadores