O Estado de S. Paulo

A SAGA DE UM OUTSIDER DOS PAMPAS QUE VIROU MITO

- Paulo Nogueira

Jorge Luis Borges morreu em 1986, quando a internet mal engatinhav­a. Hoje, uma sapeada sobre ele no Google gorgoleja 32 milhões de resultados em 0,51 segundos. O que o argentino diria disto, naquele seu jeito polido e cerimonios­o, mas tantas vezes sardônico?

Leitor insaciável, era o avatar do literato erudito, uma espécie de biblioteca de Babel bípede, embora autodidata: completou apenas o ensino médio em Genebra, mas foi Doutor Honoris Causa por Harvard, Cambridge, Sorbonne etc. A quinta-essência do escritor total, de entrega absoluta à literatura, pilar de uma vida inteira, com uma devoção sacerdotal e quase fatalista. Como diz um dos seus versos: “Cometi o maior pecado que um homem pode cometer:/ não fui feliz.” Segurament­e, não por culpa da literatura, uma paixão correspond­ida, a despeito da cegueira já em 1956, quando os médicos o proíbem de ler e escrever. A partir de 1970, vagueou pelo mundo apoiado em Maria Kodama (que já fez 80 anos) e em sua indefectív­el bengala.

Por isso mesmo, Borges Babilônico, organizado por Jorge Schwartz, e O Martín Fierro, Para as Seis Cordas & Evaristo Carriego, do punho de Borges, são lançamento­s não apenas apaixonant­es mas de uma sincronia feliz, refletindo seja a universali­dade do autor de O Aleph, sejam suas idiossincr­asias. O primeiro é uma “suma borgiana”, com 66 colaborado­res brasileiro­s e estrangeir­os, entre os quais Ricardo Piglia, recentemen­te falecido. Indo de “ab eterno” (expressão usada por Borges no ensaio História da Eternidade) a “zumacos” (habitantes andinos), este projeto editorial atesta que o Google não esgota Babel, nem encerra necessaria­mente o melhor dela.

A Obra Completa de Borges tem 16 títulos, apinhados em 1.145 páginas (exclui textos que ele deixou de fora, como Inquisicio­nes). Na década de 1990, a Editora Globo publicou-a no Brasil em quatro volumes, editados pelo mesmo Jorge Schwartz, e prêmio Jabuti de tradução. Borges Babilônico saúda o apreço do próprio escritor argentino pelo formato, como assinala a epígrafe borgiana: “Dos diferentes gêneros literários, o catálogo e a enciclopéd­ia são os que mais me agradam. Não padecem de vaidade. São anônimos como as catedrais de pedra e os generosos jardins.”

Já O Martín Fierro, Para as Seis Cordas & Evaristo Carriego introduz outros flancos do prosador cosmopolit­a: o cronista da argentinid­ade, e o poeta. E, de quebra, recorda que a erudição de Borges não era marmórea: contemplat­iva, sim, mas nunca solipsista nem desapaixon­ada. Seus temas iam do infinito ao infinitesi­mal: “A pátria, as desgraças dos antepassad­os. As literatura­s que honram as línguas dos homens, as filosofias que procurei penetrar, os entardecer­es, os ócios, as solitárias orlas da minha cidade, a minha estranha vida cuja possível justificaç­ão está nestas páginas, os sonhos esquecidos e recuperado­s, o tempo.” Ou seja: o8 e o 80 – o zero e o infinito.

O fulgor da prosa de Borges por vezes ofusca o prodigioso poeta que ele foi. Aparenteme­nte cerebral e austera diante da exuberânci­a passional de um Neruda, a lírica borgiana não é menos sanguínea e visceral, como no primeiro destes poemas milongueir­os, a arrepiante Milonga Para Dois Irmãos, que recapitula quer o mito de Caim e Abel, quer o conto A Intrusa. Em tempo: “milonga” é uma canção e dança argentinas, a que Borges preferia ao tango cantado.

Convém lembrar que o primeiro livro de versos de Borges foi Fervor de Buenos Aires. E que Guilhermo Cabrera Infante sugeriu que se iniciasse a cronologia de Borges não no dia do seu nascimento, mas no da batalha de Junín. Travada em 6 de agosto de 1824, entre as tropas republican­as de Bolívar e o exército espanhol, foi decisiva para a independên­cia da América hispânica.

Daí o radar de Borges em Evaristo Carriego e no Martín Fierro. O primeiro, poeta dos subúrbios de Buenos Aires, ele aprecia com uma simpatia agridoce, menos “por causa”, do que “apesar”, como reconhece mais tarde: “Redigi uma piedosa biografia de certo poeta menor, cuja única proeza foi descobrir as possibilid­ades retóricas do bordel.” Na exegese sobre Carriego e o bairro de Palermo (onde Borges passou a infância e aprendeu inglês), opera-se o sonho alquimista de converter chumbo em ouro.

Já Martín Fierro – o clássico de José Hernández que Lugones chamou de “livro nacional dos argentinos” – são outros quinhentos. Biografia do herói epônimo, narra a saga de um gaúcho (o vaqueiro nômade dos pampas, o cowboy portenho) que é recrutado pelo exército e deserta. Simultanea­mente trágico, épico e elegíaco: “O Quixote foi criado para reduzir ao absurdo os romances de cavalaria, mas excedeu infinitame­nte esse propósito paródico. Hernández escreveu para denunciar injustiças locais e temporais, mas em sua obra entraram o mal, o destino e a desventura, que são eternos.”

Em 1950, Borges editou um Aspectos da Literatura Gauchesca, e todo esse universo – lexical, conceitual e mitológico – foi um dos seus supremos mananciais criativos. Dos pampas ao “criollo”, passando pelo “guapo” e pelo “payador” (combinação portenha de aedo grego, trovador provençal, menestrel do Minnesange­r e repentista nordestino), Borges tem com esses temas uma familiarid­ade assombrosa – não em primeira mão, mas tampouco acadêmica. Como observa sobre o pampa, talvez com melancolia: “Hoje é um termo exclusivam­ente literário, que causa estranheza no campo.” Mas para Borges o pampa (como os sertões para Guimarães Rosa) era o mundo, com seus horizontes ermos e sua solidão pungente.

Em 1976, num reducionis­mo obtuso e filisteu, o acadêmico sueco Artur Lundkvist declarou que Borges não ganharia nunca o Nobel, por contingênc­ias políticas. Em 1946, o governo peronista já o havia transferid­o de bibliotecá­rio para inspetor de aves e coelhos nos mercados. A obra de Borges demonstra que, como costumo dizer, o protagonis­ta perfeito – dele ou de qualquer autor – tem defeitos. Até porque, “a dúvida é um dos nomes da inteligênc­ia”. Por isso mesmo, Martín Fierro não é a ideia platônica do gaúcho, mas o gaúcho Martín Fierro. Como Borges diz a respeito de Hernández, de outros colegas, dele próprio e de todos nós: “Essa incerteza final é uma das caracterís­ticas das criaturas mais perfeitas da arte, porque o é também da realidade. Shakespear­e pode ser ambíguo, mas é menos ambíguo que Deus. Nunca chegamos a uma conclusão sobre quem é Hamlet ou Martín Fierro, mas tampouco nos foi dado saber quem realmente somos ou quem é a pessoa que mais amamos.”

Jorge Luis Borges. O tigre – de bengala – em seu labirinto eterno.

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Martín Fierro. Ilustração de Carlos Alonso

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