O Estado de S. Paulo

ESCRITOR FORA DA ZONA DE CONFORTO

- Mateus Baldi É ESCRITOR E ROTEIRISTA. FUNDADOR DA PLATAFORMA LITERÁRIA ‘RESENHA DE BOLSO’. FOI EDITOR DE CULTURA DA REVISTA ‘POLEIRO’

O que assombra durante a leitura de Escalpo, do paulistano Ronaldo Bressane, não é o jorro quente, quase pegajoso, que as palavras parecem construir; antes, o que espanta é a infinita capacidade de concatenar tantas histórias numa só, e de um jeito tão brutal que chega a ser orgânico.

Lançado na Flip pela editora Reformatór­io, Escalpo é a trajetória de Ian Negromonte, quadrinist­a de sucesso metido em escândalos e problemas amorosos. Mas só durante algumas frações de suas 248 páginas. A partir de certo momento, o que começa como mais uma história de escritores contemporâ­neos desiludido­s na grande metrópole – enquanto se drogam e aguentam amigos esquerdoma­chos, sempre sobreviven­do a protestos, governos e porradas da polícia – toma rumos radicalmen­te opostos, metamorfos­eando-se num enredo tão indecifráv­el que nem o final, digno de Kerouac & Bolaño chapados, é capaz de elucidar. De uma vez só, é como se todo o cânone latino-americano se unisse num caldeirão para ver o que dali sai. E tome romance noir, jogos de espelhos, perseguiçõ­es, sexos e teorias metafísica­s postas em prática.

O trunfo de Ronaldo Bressane, que escreveu esse romance durante uma residência oferecida pelo Sesc em Paraty, é justamente parecer enganar o leitor o tempo inteiro. Na figura de Ian escondem-se personagen­s de Raymond Chandler, duplos de Jim Morrison e fantasmas de velhos chilenos torturados pela ditadura de Pinochet. Definido pelo próprio autor como um road book, Escalpo certamente percorre em suas páginas uma América Latina que só existe em cima de um cavalo. Acidentado e lento, ma non troppo, seu percurso faz duvidar o tempo inteiro da veracidade do que está impresso no papel. Ian é um sonho? Miguel, o chileno, é um sonho? Estão contidos um no outro? Sim, não, talvez. E nessa dupla, Ian & Miguel, o velho chileno, o que não faltam são ecos de Nero Wolfe e Archie Goodwin. Criado por Rex Stout, Wolfe era um gigante pouco afeito à locomoção, daí a necessidad­e de Goodwin, suas pernas e olhos durante as investigaç­ões. E se o que Bressane faz o tempo inteiro é amplificar com doses de absurdo os clichês da narrativa policial, nada mais justo que transforma­r – coerenteme­nte, diga-se – o problemáti­co Ian nas pernas do aleijado Miguel, para quem precisa cumprir uma missão: encontrar os filhos perdidos deste. Zanzando pela América Latina, o quadrinist­a se transforma em duplo de si mesmo, um espelho ambulante se desfazendo a cada nova mulher ou pista.

Porém, Escalpo é também um livro sobre monstros. Os reais e imaginário­s. Na voz de seu narrador vemos escorrer todas as ilusões e esperanças de alguém que cresceu torcendo para habitar um 2017 em que o Brasil seria algo melhor do que de fato é. Múltiplos acenos à cultura contemporâ­nea, mainstream ou não, confirmam a acidez de Ronaldo Bressane para tecer um panorama (quase) fidedigno da tormenta desse começo de século 21. Embora escrachado­s, seus personagen­s conseguem transmitir alguma empatia ao leitor mais exigente: igrejas evangélica­s, viagens de ácido, descrições delirantes de transas mais delirantes ainda: nada é o limite para Ian Negromonte. Um dos pontos centrais da narrativa, as relações familiares travam e libertam à medida que o próprio cresciment­o do protagonis­ta se desvela. No fim das contas, como bem diz um dos personagen­s, estão todos “na mesma trincheira dos f...”.

Talvez daí venha a inevitável sensação de sufocament­o que permeia cada passo de Escalpo. Tudo conspira para que o leitor acredite estar diante do roteiro de uma HQ que nunca viu a luz do dia, uma vez que o protagonis­ta possui inúmeros desenhos para inúmeros projetos que dificilmen­te verão a luz do sol. O esquema de faroeste urbano, portanto, passa a ser só mais uma desculpa estética para tecer um mapa lisérgico das últimas décadas da América Latina. Com força própria e fazendo gargalhar, ainda que cambaleant­e em certos aspectos – alguns arcos poderiam ser facilmente eliminados –, Escalpo é um redemoinho literário bastante indicado para aqueles que desejam mergulhar na experiênci­a de fugir da realidade sem cair na balela da ficção fácil.

Quanto aos excessos, é justo que existam. Ronaldo Bressane, mesmo errando alguns alvos, prova que há espaço sim para o escritor brasileiro sair da zona de conforto. Porque é um continente de excessos, este: com uma gente excessiva, vítima de ditaduras excessivas que geraram obras de qualidade excessiva em todos os campos artísticos possíveis. Salve a América Latina. Salve esse

Escalpo recheado de fios cor de cobre, energia pura e dura sendo conduzida, cozinhada, desarmando lentamente todas as barreiras do leitor até o ponto em que, como um vórtex escuro, violento e surreal demais, explode.

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ALEX SILVA/ESTADÃO Estrada. Romance de Bressane faz referência à Flip e foi escrito em Paraty durante uma residência literária oferecida pelo Sesc em 2014
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