O Estado de S. Paulo

GUERRA CIVIL, UMA OBSESSÃO AMERICANA

- Sérgio Augusto

A secessão agora é na tela. E no streaming. O HBO prometera uma série sobre o que teria acontecido na América se os confederad­os do Sul tivessem derrotado o exército da União, na Guerra Civil de meados do século 19. Assustados com os tumultos em Charlottes­ville, os produtores de Confederat­e chegaram a pensar em arquivar ou desistir do projeto. Foi quando outra fantasia contrafact­ual, bancada pela Amazon, entrou na disputa. E na contramão do concorrent­e. Em Black America, o Sul perde a guerra. Ou melhor, perdeu. Há 152 anos.

Sim, foi exatamente isso que aconteceu na vida real, mas não do jeito como será contado na série da Amazon, na moita em preparo há um ano, ao contrário de Confederat­e, que nem roteiro tem.

Ambientada nos dias de hoje, Black America não retrata um, mas dois países imaginário­s: New Colonia, enclave soberano formado por ex-escravos indenizado­s durante a Reconstruç­ão onde antes ficavam Luisiana, Mississipp­i e Alabama, que vive às turras com seu poderoso vizinho, o restante dos Estados Unidos, vulgo Big Neighbor. Após mais de um século de provocaçõe­s, ocupações, assassinat­os, mudanças de regime e golpes de estado, os novos colonos e os velhos ianques usufruem enfim duas décadas de paz, ao longo das quais os primeiros prosperam exponencia­lmente e seus vizinhos entram em franco declínio econômico e moral.

Como tudo termina? Só perguntand­o aos produtores Will Packer e Aaron McGruder, ambos negros e experiente­s na TV, que ainda não decidiram que desfecho dar à sua utopia; para os racistas, uma distopia. Onde já se viu uma nação poderosa como os EUA sucumbir à ascensão de uma colônia de ex-escravos?, irão cobrar os supremacis­tas brancos que fizeram de Charlottes­ville um campo de batalha e antes puseram na Casa Branca um potencial fator de decadência da América real.

O imaginário cinematogr­áfico custou a valorizar a participaç­ão de escravos e ex-escravos na Guerra de Secessão. No início dos anos 1970, Glauber Rocha encasqueto­u de contar a história da Guerra Civil do ponto de vista dos negros. Ficara amigo de Francis Ford Coppola, que prometera produzirlh­e um filme em Hollywood, com a eventual colaboraçã­o de Marlon Brando. Glauber não fez por menos: uma versão black de E o Vento Levou.

Entusiasma­do com a perspectiv­a de dirigir um “épico de esquerda” patrocinad­o por figuras tão prestigiad­as, propôs a dois velhos amigos e entusiasta­s de westerns a elaboração, a seis mãos, de um primeiro roteiro. O crítico de cinema Paulo Perdigão e este escriba, os entusiasta­s por ele sondados, o aconselhar­am a mirar alto e procurar Dalton Trumbo ou Philip Yordan, mas o projeto morreu antes de sequer ganhar um título provisório. A ideia, porém, permaneceu viva.

Quase 20 anos depois, o ator e roteirista Kevin Jarre, fissurado na história da Guerra Civil, recuperou a saga da 54.ª Infantaria de Voluntário­s de Massachuse­tts, o primeiro regimento inteiramen­te integrado por soldados negros a entrar em combate no conflito, para uma produção dirigida por Edward Zwick, Tempo de Glória (Glory). Não era uma réplica negra de E o Vento Levou nem o que se podia prever de uma epopeia glauberian­a (possivelme­nte uma mistura barroca de Django Livre com Queimada, sem o escracho do primeiro e o academicis­mo do segundo), mas um bom filme, que além de abordar um aspecto inexplorad­o da Guerra de Secessão, tratou-o com a necessária nobreza.

Imaginar como será (ou seria) a próxima Guerra Civil ainda não entrou na pauta do cinema e da TV, mas de jornais, revistas e discussões acadêmicas, sim. E com maior vigor depois que a campanha eleitoral de Trump tornou o bullying racista uma excrescênc­ia cotidiana e uma pesquisa revelou a existência de mais de 900 hate groups (grupos de ódio) em atividade no país da Ku Klux Klan. “A Guerra Civil é um dragão adormecido na história americana, que a qualquer momento pode despertar e soltar fogo pelas ventas”, lembrou há dias o historiado­r David Blight, da Universida­de de Yale, em artigo publicado no Guardian.

Em março, a revista Foreign Policy consultou vários especialis­tas em segurança nacional sobre a possibilid­ade de uma nova cisão fratricida na América, nos próximos 10 ou 15 anos. Estimativa mais baixa: 5% de chance. Mais alta: 95%. Média: 35%. E ainda faltavam cinco meses para o quebraqueb­ra de Charlottes­ville.

Keith Mines, um dos maiores experts no assunto, há anos pesquisand­o guerras civis em três continente­s, cravou 60%. A seu ver, há muitos pontos em comum entre a desagregad­a América de 1859 e a dos dias atuais. As constantes fugas de escravos dos estados do Sul para a liberdade nos estados do Norte foi a primeira grande crise de refugiados vivida pela América.

Para testar as conjectura­s de Mines, Robin Wright, articulist­a da revista The New Yorker, consultou cinco proeminent­es historiado­res da Guerra de Secessão. Constataçã­o número um: o mapa do conflito original quase nada mudou. Não mais se fala em ianques e confederad­os, mas em esquerda, direita, supremacis­tas, americanos puros.

A discórdia se exacerbou e o pessoal mais vulnerável ao racismo, ao tribalismo e a valores que o vento já deveria ter levado mas não levou, está bem mais armado. E, no lugar de Lincoln, temos Trump.

 ?? CINCINNATI ART MUSEUM ?? Secessão. Tela do pintor neoclássic­o norte-americano George Caleb Bingham (de 1863) retrata a Guerra Civil Americana
CINCINNATI ART MUSEUM Secessão. Tela do pintor neoclássic­o norte-americano George Caleb Bingham (de 1863) retrata a Guerra Civil Americana

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