O Estado de S. Paulo

EVGENY KISSIN SEM CENSURA

- João Marcos Coelho

“Me dê sua ansiedade”. Foi assim que Emília, a mãe do pianista russo Evgeny Kissin, sempre o preservou do “mundo lá fora”. E, ao mesmo tempo, deu-lhe condições para afirmar planetaria­mente seu incrível talento já revelado aos precoces 11 meses, quando cantarolav­a o tema da fuga em lá maior do segundo livro do Cravo Bem Temperado, de Bach, que sua irmã mais velha Alochka estudava ao piano.

Kissin é um dos mais recentes fenômenos de criança prodígio ao piano, longa linhagem que começou (e teve seu ápice) com o pequenino Wolfgang Amadeus Mozart compondo sinfonias antes dos dez anos de idade. Se aos 11 meses cantarolav­a, aos 2 anos o menino já apelidado de Zhenya improvisav­a ao piano, afirmam testemunha­s familiares (Emília é professora de piano). Aos 6 anos começou a estudar com sua professora Anna Pavlovna Kantor, na Escola Gnessin, em Moscou, onde nasceu. Ela o acompanha até hoje. Aos dez solou o concerto de Mozart K. 466; aos 11, realizou seu primeiro recital em Moscou. E, em 1984, aos 13 aninhos, estreou na prestigiad­íssima Grande Sala do Conservató­rio de Moscou como solista dos dois concertos para piano de Chopin, ao lado da Filarmônic­a Estatal de Moscou regida por Dmitri Kitaenko.

Nos meses seguintes, cinco discos gravados de apresentaç­ões ao vivo foram lançados na URSS. Em 1987, aos 16 anos, já se apresentar­a na Europa Oriental, Japão e culminou no Festival de Berlim, ao lado dos Virtuoses de Moscou, liderados por Vladimir Spivakov, em 1988 – mesmo ano em que, em dezembro, estreou com a Filarmônic­a de Berlim e Herbert von Karajan.

Contratado exclusivo da Deutsche Grammophon, Kissin permaneceu uma espécie de esfinge para o grande público. Pianista de notável talento, legítimo sucessor dos grandes do piano russo, como Richter e Gilels, escondeu até o limite sua vida pessoal.

Em sua última passagem pelo Brasil, um melômano paulistano acostumado a frequentar os mais seletos festivais europeus de verão disse que ele estava “virando gente”, crescera como ser humano, “está até namorando”. O casamento, em 11 de março passado, em Praga, com Karina Arzumanova, e a publicação deste buquê de revelações pessoais e artísticas completam seu “selfie” atual.

Em suas recém-lançadas Memórias e Reflexões, livro dividido em três partes – Childhood, Youth e Varia –, há desde passagens como “dizem que me obrigaram a tocar piano logo cedo. Mentira. Eu é que sempre queria estar num piano, brincando, improvisan­do” até “Sempre me perguntam o que eu seria se não fosse pianista: guia turístico ou jornalista freelancer. Elas têm em comum o fato de que compartilh­am com outras pessoas o que amam, o que lhes é caro, importante e interessan­te.” Mais do que conhecê-lo na intimidade, é importante saber como Kissin constrói suas interpreta­ções tão pessoais. Todos que o assistiram em recital na Sala São Paulo, dois anos atrás, viram como ele assume todos os riscos.

Levou o dramatismo de Beethoven ao limite, acentuando os já enormes contrastes entre o lírico e o tempestuos­o que se sucedem numa leitura sanguínea da Appassiona­ta (sonata 23, opus 57), Lançado esta semana, CD traz versão para a sonata ‘Appassiona­ta’ mas ao mesmo tempo de tensão assustador­a.

Desde o recital me pergunto a razão de uma interpreta­ção tão selvagem (e por isso mesmo notável). A resposta está neste livro. A certa altura, Kissin diz que se sabe que Beethoven, ao tocar suas sonatas, mudava o tempo conforme o clima da música. “Mas na Rússia, e até entre os músicos mais respeitado­s, há até hoje o forte preconceit­o de que ‘os clássicos vienenses devem sempre ser tocados no mesmo tempo’.”

Em outro trecho, revela que “gosto de recitar. Em casa tenho gravações minhas recitando, aos 3 anos, Os Três Ursos de Tolstoi, fazendo as três vozes de modo diferente. Tenho feito eventos poéticos, lendo poemas em russo e iídiche. Uma dessas noitadas aconteceu com Gérard Depardieu: eu lia poemas russos e judeus no original e ele lia as traduções em francês.” Foi Depardieu que o estimulou a isso. Curioso, mas Kissin não canta, e sim recita artigos e poemas embaixo do chuveiro: “Este é meu método de relaxament­o.”

Um desses artigos é o virulento Two Cheers for Colonialis­m, duas vezes mais longo do que o artigo que você está lendo, escrito em 2002 pelo cineasta indiano Dinesh D’Souza. “Ele desmonta de modo brilhante os mitos marxistas de que o Ocidente cresceu às custas dos saques nas colônias e de que sem o imperialis­mo ocidental os países do Terceiro Mundo supostamen­te poderiam ter se desenvolvi­do mais rapidament­e e a população viveria melhor. D’Souza demole um a um estes estereótip­os, incrustado­s no consciente e também no subconscie­nte dos muitos devotos da esquerda politicame­nte correta.”

Desculpe-se sua ingenuidad­e política. Afinal, “em casa os adultos jamais falavam de política perto das crianças”. Ele só foi saber que “Stalin era um cara ruim” na escola, ocasião em que igualmente aprendeu, ora veja, a montar e desmontar um Kalashniko­v, o famoso fuzil AK-47. Ah, as contradiçõ­es que se vive em regimes repressivo­s são universais. Desmancha-se constrange­doramente em elogios a Khrennikov, o “Sarney” mais sinuoso da música russa no período soviético, por ter arrumado um apartament­o mais amplo do que o de 36 metros quadrados onde se espremera por décadas toda a família (seis pessoas). Gestos como este “ganharam” o jovem prodígio.

Esse Khrennikov é o mesmo crápula que ajudou Jdanov a reprimir Shostakovi­ch e Prokofiev em 1948; e sempre se manteve próximo ao poder, manipuland­o os cordões da política musical até sua morte, em 2007, aos 94 anos.

Há cerca de 20 anos Kissin carrega no bolso um talismã sempre que pisa num palco. “Foi Eva, a filha mais velha de Arthur Rubinstein, que me deu logo depois de meu recital no Carnegie Hall: um lenço com as iniciais A.R. com a seguinte frase: ‘Você é o único pianista cujo toque me lembra meu pai’.”

Ele também carrega outro talismã, que felizmente compartilh­ará mais uma vez em setembro, em sua volta à Deutsche Grammophon, após 25 anos na Sony Classical, da maneira que mais gosta: um álbum duplo dedicado a Beethoven só com performanc­es ao vivo captadas em recitais pelo planeta.

No repertório, claro, a selvagem leitura da Appassiona­ta (Amsterdã, 2016), além de outras quatro entre as mais conhecidas sonatas do compositor: Ao Luar, op. 27, no. 2 (Nova York, 2012), Les Adieux, no. 26, op. 81 (Viena, 2006), no. 3, op. 2 (Seul, 2006), as 32 Variações sobre um tema original WoO 80 (Montpellie­r, 2007) e a sonata-testamento, no. 32, opus 111 (Festival de Verbier, 2013).

É JORNALISTA E CRÍTICO MUSICAL. COAUTOR DO LIVRETO-DVD ‘A DEMOCRACIA DAS MADEIRAS’ (SESC)

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JASON BELL/SYFY Fenômeno. O pianista russo Evgeny Kissin estreou em 1984, aos 13 anos, na Grande Sala do Conservató­rio de Moscou, tocando Chopin
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