O Estado de S. Paulo

O CINEMA QUE NASCEU FORA DAS TELAS

- Donny Correia

A questão é perene e os debates, sempre polêmicos. Cinema é a soma de todas as artes, ou uma arte em si mesma? Não existe resposta para isso, aparenteme­nte. Haverá aqueles que defenderão o filme como a arte genuína nascida da revolução antropológ­ica da modernidad­e. Outros defenderão que é apenas uma soma da literatura, do teatro e da fotografia. Em tempos de filmes tão escancarad­amente voltados ao consumo do entretenim­ento, com produções incensadas, em que a última coisa é, ou a narrativa, ou a estética, seria interessan­te pensar como o cinema se coloca diante das artes visuais, sobretudo quando ainda chegam ao agonizante mercado de home video relançamen­tos caprichado­s como as que nos disponibil­izam distribuid­oras do calibre da Versátil e da Obras Primas do Cinema, que acaba de recolocar em circulação uma bela caixa de filmes expression­istas alemães.

Foi Jacques Aumont quem chamou os irmãos Lumière de “os últimos impression­istas”, alegando que a criação do cinematógr­afo aleijou a arte figurativa do grupo de pintores encabeçado por Monet, Renoir, Degas. Para o escritor, já não havia mais sentido na pesquisa da passagem das horas por meio da luz e dos movimentos sugeridos pelas pinceladas impression­istas, já que o cinema deu ao público o real movimento das coisas. Este fenômeno não pode ser analisado de forma isolada. A modernidad­e colocou abaixo muitas das convicções sociais e artísticas dos velhos séculos iluminista­s. O século 20 viu as melhores expectativ­as positivist­as ruírem com a guerra. Como bem observa Giulio Carlo Argan, a fuga dos pintores para uma poética da subjetivid­ade, como os “fauve”, na França, e os integrante­s do Die Brücke, na Alemanha, cunhariam o que conhecemos como expression­ismo.

Por outro lado, ainda estamos em tempo de celebrar os cem anos do surgimento do dadaísmo, forjado em meio a uma Europa esfacelada, um movimento cujos membros fundadores enxergaria­m o potencial da cinematogr­afia para efeitos estéticos. Se a América podia se comover com um novato Chaplin, o mundo poderia pensar a partir da ruptura. Portanto, figuras como Hans Richter, Viking Eggelin, Man Ray e até mesmo Duchamp renderam-se ao filme, abstraindo imagens em movimento tanto quanto o faziam em suas provocativ­as pinturas, colagens e assemblage­s.

Verdade que se tratam de filmes um tanto cifrados, como Rythmus 21, Emak Bakia e Anémic Cinéma. Somente no movimento cinematogr­áfico conhecido como expression­ismo alemão é que a narrativa se reconcilia­ria com a pintura das chamadas vanguardas históricas.

É preciso pensar o filme como resultado direto das rupturas do início do século 20, ao mesmo tempo que é o meio condutor para que o público tome contato com uma análise de seu tempo por meio da arte, fazendo com que ela cumpra seu papel de, também, problemati­zar e interpreta­r seu tempo.

Em 1920, o pesadelo de uma Europa reconfigur­ada a fórceps se materializ­ou nos cantos oblíquos e escuros das ruas de Holstenwal­l. O cinema alemão nos mostrou que somos o sonâmbulo Cesare eternament­e a mercê de um Dr. Caligari, cuja onipresenç­a opressora está solidament­e diluída num Zeitgeist peculiar. Os cenários expression­istas pensados por artistas ligados ao grupo Der Blaue Reiter levaram para o cinema imensas imagens da distopia e do fracasso.

A partir desse momento, as narrativas tortuosas nos quadros de Picasso, Klee, de Chirico e Dalí tornaram-se tomadas experiment­ais do cinema europeu e, na sequência, do cinema mundial. Não haveria o Limite, de Mário Peixoto, sem os exercícios de câmera de Jean Epstein. Não haveria Cidadão Kane, ou o cinema noir, sem os doutores Mabuse e Caligari. Não haveria Eraserhead, e muito do cinema de David Lynch, sem Um Cão

Andaluz. O diálogo estabeleci­do entre artes plásticas e cinema é tal, que até no Extremo Oriente se fez ressoar na obra-prima de Teinosuke Kinogasa, Uma Página de Loucura, de 1926.

O cinema de entretenim­ento, para fins utilitário­s, simplifico­u a fruição do espectador para que a mensagem final, o ópio da rotina, fosse incisivame­nte eficaz. Não obstante, todo o trauma psicossoci­al e histórico permanece no inconscien­te coletivo, os fracassos de uma suposta modernidad­e redentora se acumularam ao ponto de conseguirm­os, cada vez mais, nos reconhecer, ainda hoje, em cada grão das imagens distorcida­s dos chamados filmes de vanguarda, este fenômeno que, em tempos de mídias cada vez mais efêmeras e dadas às necessidad­es da liquidez dos tempos, assegurou o espólio de uma história de quase 120 anos de arte.

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SUNDAY BEST RECORDINGS Diálogo. Cinema de David Lynch nasceu de Luis Buñuel, dos surrealist­as e do trânsito entre artes visuais e filmes

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