O Estado de S. Paulo

Gentileza gera gentileza José Neves (esq.) e a solidaried­ade em SP.

De bebedouros para animais até um café ‘para quem vier’ são exemplos de solidaried­ade na rua

- Priscila Mengue

Sede não é um problema para os cães que circulam pela Rua Conselheir­o Brotero, na zona oeste de São Paulo. Para eles, saciar a necessidad­e de água está ao alcance de um botão na calçada da Aquarela Pet, em Higienópol­is. Pai e filha, os sócios Claudinei e Isabel Moura, de 63 e 32 anos, instalaram um bebedouro no local, antes mesmo da abertura, em março de 2014.

“Tem cachorro que já se acostumou tanto que passa aqui para tomar água mesmo quando não vai na pet shop”, conta ele, que teve a ideia com base na própria experiênci­a de levar animais para passear.

No mesmo bairro, a nove quadras de distância, diariament­e cadeiras são dispostas em uma parada de ônibus da Rua Canuto do Val, entre 7 e 22 horas. O hábito surgiu, contudo, há mais de seis anos, quando o comerciant­e Celso Miranda, de 52 anos, trabalhava no bairro do Ipiranga, na zona sul. Quando trocou o endereço da Tapeçaria Design Águia, resolveu repetir o gesto, voltado especialme­nte para idosos, grávidas e pessoas com necessidad­es especiais.

Tanto o bebedouro quanto os assentos são exemplos de pequenas gentilezas urbanas que suavizam a correria dos moradores de São Paulo. Em comum, elas reúnem ideias simples, de baixo investimen­to financeiro que, de alguma forma, promovem a melhoria da qualidade de vida na cidade.

Compartilh­ando. Uma história mais conhecida, que se encaixa no mesmo conceito, é a do vendedor de lanches José Carlos Pedro das Neves, de 57 anos. Há dois anos, seu projeto Café Compartilh­ado – no qual um cliente pode comprar um crédito de café ou lanche para ser, posteriorm­ente, retirado por um morador de rua – viralizou nas redes sociais depois de ser fotografad­o por uma estudante de Jornalismo. O post obteve mais de 9,9 mil compartilh­amentos.

A repercussã­o foi tanta que o ambulante começou a receber compradore­s de diversos cantos da cidade e da Grande São Paulo. No quadro negro em que anotava as doações, chegou a reunir mais de 50 créditos de café, número que hoje gira em uma média de três. Ultimament­e, contudo, o maior colaborado­r costuma ser o próprio “Mister Neves”, que faz “doações da casa” quase diariament­e, além dos dias em que passa em viadutos do centro para repassar os lanches que não foram vendidos no dia. “Geralmente sobra. Então por que não ajudar?”

Gaúcho de Porto Alegre, vive desde 2008 em São Paulo. Depois de 29 anos trabalhand­o com tecnologia da informação, resolveu abrir um empreendim­ento próprio, em 2014. Três meses depois, uma turista mato-grossense sugeriu deixar um café suspenso para o próximo cliente. Neves gostou da ideia e, dias depois, comprou as lousas em que anota as doações e também as compras com destinatár­io – nas quais uma pessoa deixa um lanche direcionad­o para outra em específico.

A partir daí, ele começou a se aproximar da população de rua do entorno da Consolação, na República. Hoje, conhece muitos pelo nome. “Alguns passam aqui quase todos os dias. Nunca digo não. Às vezes apenas peço para passarem mais tarde”, diz. Segundo ele, as baixas nas doações ocorrem em parte pela crise, que também reduziu suas vendas em geral. Mas a solidaried­ade continua.

Outra gentileza voltada principalm­ente à população em situação de rua é promovida pela Doceria Pamplona, localizada no bairro Jardim Paulista, na zona oeste paulistana. Do lado de fora do local, desde 2015, o empresário Ricardo Mafra, de 33 anos, instalou uma placa com seis ganchos e a seguinte mensagem: “Está com frio? Pegue um. Quer ajudar? Traga um”.

Segundo ele, a ideia veio de uma postagem em um site estrangeir­o e iria permanecer durante alguns meses, mas acabou perdurando mesmo nas estações quentes. “Chama a atenção, todo mundo vê e facilita tanto para quem doa quanto para quem pega”, explica ele, que relata receber de 15 a 30 doações semanais.

Exemplo. Um dos doadores é o analista de mídias sociais Héliton Monteiro, de 35 anos, que conheceu o projeto ao passar no local no caminho para o trabalho. “Achei sustentáve­l. Elimina etapas e deixa a ação mais simples e objetiva”, comenta ele, que já participou duas vezes. Já a stylist Manu Carvalho, de 43 anos, diz ter ficado “tocada e emocionada” à primeira vista. “Postei (nas redes sociais) e depois passei lá três vezes e deixei minhas doações penduradas”, conta Manu, que nunca chegou a entrar na doceria.

Enquanto há projetos que focam no alimento e no conforto, há também aqueles voltados para a difusão da cultura, como o Tapera Taperá, mistura de centro cultural e livraria localizado na Galeria Metrópole, no centro de São Paulo. Criado pelo diplomata Antônio Freitas, de 40 anos, o espaço inclui também uma biblioteca com 2.975 livros, grande parte reunida nos 12 anos em que viveu no exterior. “Até brinco que é uma experiênci­a político-cultural”, comenta ele, que em quase dois anos já fez 1.217 empréstimo­s a cerca de 400 usuários cadastrado­s.

“Tinha muitos livros, alguns ainda novos. Gostaria que eles fossem lidos. Aqui, as pessoas, ao devolver, contam um pouca da experiênci­a, a gente discute, é como se eu lesse de maneira indireta”, relata ele. “As pessoas podem ficar com os livros por até três meses. Os livros são emprestado­s para serem degustados, sem precisar ler correndo”, explica.

Segundo ele, a maioria dos frequentad­ores é de estudantes universitá­rios e moradores do centro, como o professor de História Miguel Tadeu Vicentim, de 52 anos. “Fiquei impactado pelo acervo, com livros de excelente qualidade e difíceis de encontrar, principalm­ente para empréstimo. O prazo é ótimo, um mês para poder ler com tranquilid­ade”, elogia.

Já a escritora Ana Rüsche nunca retirou um livro do acervo, mas já doou. “Biblioteca­s são muito importante­s, pois abrem outras possibilid­ades de leitura que a compra de um livro. Você pode se arriscar mais, pedir sugestões”, argumenta a autora de Furiosa.

Coração bom •

“Sempre digo que as pessoas são bastante solidárias, ainda são. Parece que não, que São Paulo corre demais, que as pessoas não param, não observam as coisas, mas tem muita gente com o coração bom, que quer fazer doação.” José Carlos Pedro das Neves

VENDEDOR DE LANCHES

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GABRIELA BILÓ/ESTADÃO
 ?? GABRIELA BILO/ESTADÃO ?? Pedidos até de outros municípios. Na lousa na calçada, Neves chegou a registrar mais de 50 créditos de café por dia
GABRIELA BILO/ESTADÃO Pedidos até de outros municípios. Na lousa na calçada, Neves chegou a registrar mais de 50 créditos de café por dia
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RAFAEL ARBEX/ESTADÃO Sentado. Conforto para esperar condução na Canuto do Val

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