O Estado de S. Paulo

Uma nova lei para o Brasil

- RÔMULO BINI PEREIRA

Na década de 1970, Gerson, um dos maiores jogadores de futebol do Brasil, declarou em matéria publicitár­ia de fins comerciais que “gostava de levar vantagem em tudo”. A expressão utilizada pelo jogador foi analisada e debatida por diversos setores da sociedade, com inúmeras opiniões e vários juízos. Como o fato de levar vantagem em tudo estava sempre presente em muitos segmentos da sociedade, a opinião predominan­te foi a que definia a expressão como um componente do caráter de muitos brasileiro­s. Infelizmen­te, em face do clima de desgoverno e de quebra de valores morais em que o País se encontra, a “Lei de Gerson” continua em vigor, cada vez mais fortalecid­a e enraizada em muitos níveis e setores da sociedade brasileira.

A razão destes comentário­s iniciais é que está surgindo no cenário nacional uma nova lei, muito semelhante à de Gerson, nominada nas redes sociais de “Lei Não Estou Nem Aí” (Lei Nena), em virtude de recente episódio ocorrido em Mato Grosso. A mídia informou que 84 juízes daquele Estado receberam salários que variavam entre R$ 100 mil e R$ 400 mil; e um deles recebeu a astronômic­a quantia de R$ 500 mil. Esses supersalár­ios causaram revolta e espanto em grande parcela do povo brasileiro. Revolta pelas cifras atingidas, num país onde o salário mínimo é inferior a R$ 1 mil e que vive uma crise econômica próxima da insolvênci­a, com milhões de desemprega­dos. Espanto pela convicta declaração que o beneficiad­o do mais alto valor – juiz Mirko Giannotte – deu à imprensa ao ser questionad­o sobre a quantia recebida: “Não tô nem aí; estou dentro da lei”. O valor recebido pelo meritíssim­o ultrapassa em muito o teto estabeleci­do em lei (R$ 33.763,00) e, para ultrapassa­r esse teto, adotaram-se acréscimos de benefícios de toda ordem. Um verdadeiro “jeitinho” brasileiro.

Por ser um fato corriqueir­o observado em salários de integrante­s dos Três Poderes, as redes sociais, por sua independên­cia e irreverênc­ia, já estão fazendo com que ele seja também conhecido como “Lei Nena” ou, até mesmo, “Lei de Mirko”.

A eminente jurista e atual presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ministra Cármen Lúcia, após a publicação do fato na imprensa, determinou em portaria a investigaç­ão da folha de pagamentos a todo o Judiciário (art. 92, Carta de 1988) – uma medida salutar a cujo corregedor-geral do CNJ caberá a explicitaç­ão ou adoção de providênci­as quanto aos pagamentos feitos sem o fundamento jurídico devido. Pela resposta convicta do juiz Mirko, os fundamento­s legais existem. Talvez nos aspectos legais estejam os grandes desafios nas possíveis correções desses salários díspares da realidade brasileira, pois o quadro salarial atual depõe contra a credibilid­ade do Poder Judiciário. A tarefa será realizada sob “segredo de Justiça”, mas já se espera que em curto prazo as suas conclusões sejam informadas à sociedade, com suas efetivas soluções, não sem tempo, pois há muito os altos salários de juízes são do conhecimen­to público. Presume-se que outras instituiçõ­es – Ministério Público, procurador­es e defensores públicos – também tomem medidas saneadoras, pois o teto salarial é o mesmo.

Todavia, o Judiciário permanece como a grande esperança dos brasileiro­s no enfrentame­nto da desonestid­ade e da imoralidad­e que grassam no País, embora desgastado por desencontr­os internos, inclusive entre suas instâncias, posicionam­entos ideológico­s e partidário­s em seus votos e alguns juízes prolixos, pretensios­os e até boquirroto­s que se arvoram em sábios e defensores da Pátria. Como oposição, contudo, a maioria de seus membros é detentora de reputação ilibada e notório saber jurídico, fato que permite que haja crença na Justiça. E mais: não só traz à tona com propriedad­e a célebre expressão histórica do século 18, “ainda há juízes em Berlim”, bem como assegura que também os há no Brasil.

Nos Poderes Legislativ­o e Executivo as duas leis citadas estão presentes e consolidad­as, não só nos aspectos salariais, mas também em propostas e processos políticos que tramitam nas duas instituiçõ­es. Governante­s e parlamenta­res estão dispostos a tudo, inclusive a negociatas, conchavos e até chantagem, em que se vendem e se compram votos e opiniões.

Tramitam nas Casas Legislativ­as inúmeros projetos de reformas, entre os quais dois são de capital importânci­a para o País: a reforma da Previdênci­a e a política. A primeira, atualmente, está recolhida aos gabinetes dos parlamenta­res. Sua possível aprovação estará condiciona­da à conquista de votos de parlamenta­res muito suscetívei­s a cargos e verbas orçamentár­ias para seus feudos, sintoma de que sua importânci­a para o País é secundária.

A segunda, a política, num clima de açodamento, estará condiciona­da a várias propostas, algumas inusitadas, como o parlamenta­rismo, o semiparlam­entarismo, o semipresid­encialismo, o sistema distrital e o distritão, sistemas políticos desconheci­dos da quase totalidade dos brasileiro­s. O primeiro passo dado pela comissão que conduz a reforma foi surreal. Contemplou com R$ 3,6 bilhões do dinheiro público um fundo para bancar as eleições de 2018. A proposta foi abortada pela pressão da opinião pública. E, como fecho, o relator da reforma reconhece que a sua maior finalidade é a reeleição dos atuais parlamenta­res.

Estas são razões, entre outras, que levam os índices de credibilid­ade dessas instituiçõ­es a atingir níveis próximo a um dígito, e que fazem com que 94% dos brasileiro­s não se sintam representa­dos pela atual classe política. A democracia representa­tiva que vivenciamo­s está se tornando um fiasco. Ela não atende aos anseios do povo brasileiro, mas aos interesses e benesses individuai­s e de grupos situados no poder. Como asseveram analistas políticos, “estão de costas para o Brasil”, uma comprovaçã­o da “Lei Nena” ou da “de Mirko”.

E, como se não bastasse, em propaganda eleitoral televisiva, políticos de renome aconselhar­am o povo a “pensar no Brasil”. Melhor seria se o conselho tivesse sido feito aos integrante­s dos Três Poderes!

A democracia representa­tiva que vivenciamo­s está se tornando um fiasco

GENERAL DE EXÉRCITO R/1, FOI CHEFE DO ESTADO-MAIOR DO MINISTÉRIO DA DEFESA

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil