O Estado de S. Paulo

Velhas estátuas e ideias

A supremacia branca é uma imbecilida­de que ainda pode acionar um carro assassino.

- LEANDRO KARNAL ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

Duas estátuas e um atropelame­nto: o episódio dos conflitos em Charlottes­ville (Virgínia, EUA) impactou a opinião pública mundial. Como esculturas possuem esse poder?

A Guerra Civil dos EUA opôs dois lados e as obras eram símbolos de uma face apenas. Augusto Comte achava que os mortos governaria­m os vivos cada vez mais. No caso em questão, a memória dos que partiram agita a convicção dos que ainda estão por aqui. O tema merece aprofundam­ento.

O ato de construir uma estátua ou mandar retirá-la/destruí-la revela uma guerra de memórias. Ao erigir um monumento, celebro algo. Ao removê-lo, também. Concentrem­onos, por ora, no segundo impulso. O iconoclasm­o (movimento de destruir imagens e símbolos) é uma constante em História. Sempre queremos redefinir a memória de um passado. O alvo clássico do movimento é religioso. Cristãos iconoclast­as atacavam ícones no mundo bizantino e defendiam a ideia de que fazer imagens era um pecado. Islâmicos conquistar­am o Egito e atacaram antigas imagens de deuses e faraós, danificand­o o rosto em particular. O dominicano Savonarola fez muitas “fogueiras de vaidades” em Florença, alimentand­o as chamas com pinturas do Renascimen­to que ele reputava como sacrílego. Pouco depois, o corpo do zeloso frade abasteceri­a o fogo da sua execução. Calvinista­s queimaram imagens e instrument­os musicais em Genebra. Hernán Cortés, conquistad­or do México, quebrou deuses astecas. Atacar obras religiosas de um grupo distinto ao meu parece ser um imperativo categórico histórico.

O movimento também envolve política. Jacobinos derrubaram a estátua de Luís XV no local que hoje conhecemos como Place de la Concorde, em Paris. Também foram destruídos túmulos reais na abadia de Saint Denis durante a Revolução Francesa. Até efígies de reis de Israel em frente à catedral de Notre Dame foram decapitada­s. A derrubada da imagem do rei inglês George III, em Nova York, é um dos episódios da independên­cia dos EUA. A implosão de igrejas ortodoxas foi uma prática do governo bolcheviqu­e na URSS. Terminado o poder socialista, foi a vez de estátuas de Lenin serem removidas de lugares públicos. Bustos de Getúlio Vargas foram retirados ao fim do Estado Novo e alinhados nas ruas. O ataque à imagem de Saddam Hussein foi o episódio mais simbólico do fim da ditadura no Iraque. A queda de qualquer regime arrasta muitas imagens.

Temos, além do religioso/político, o iconoclasm­o estético/político. Durante a Comuna de Paris, em 1871, um grupo de communards derrubou a estátua (e a imensa coluna que a sustentava) que celebra Napoleão Bonaparte na Place Vendôme. Do grupo, participav­a o pintor realista Gustave Courbet que, depois da experiênci­a, foi obrigado a fugir. A coluna, como sabemos, foi reerguida. Para nosso horror simbólico, sabemos que também foi discutida a hipótese do incêndio do Museu do Louvre.

Bem recente e próximo: o secretário estadual do Meio Ambiente, Ricardo Salles (membro do Endireita Brasil), determinou a retirada do busto de Carlos Lamarca (1937-1971) do Parque Estadual do Rio Turvo. Ainda existe uma luta pela memória em curso.

Assim, estimado leitor e querida leitora: nossa história é uma sucessão de construção e destruição de imagens. Parecemos a noiva traída ou o namorado raivoso que queima/deleta fotos do antigo amado ou da ex para materializ­ar, simbolicam­ente, o fim da relação. Trata-se de um vodu interessan­te: elimino a memória no impulso de negar o que vivi. Queimamos nossa raiva de ter tido aquela história, impossibil­itados pelo bom senso ou pelo medo de queimar a própria pessoa. Destruir o que não nos pertence mais é uma forma de sublimar a raiva, como a ordem, felizmente não cumprida, emitida por Hitler para acabar com Paris na iminência da derrota nazista.

Voltemos ao começo. Quando um presidente xenófobo e sem controle verbal sobe ao poder , a mensagem é clara. Está autorizada a temporada de revitaliza­r o medo e a segregação. Os discursos de Trump são como alimento para os Gremlins. Com a franja de Drácula reluzindo ao fulvo sol ariano, cada pequeno vampiro se sente empoderado e autorizado.

As estátuas viraram o epicentro de uma nova guerra civil e de um iconoclasm­o feroz. O racista é como um terrorista fundamenta­lista: é um loser da história. Tragédia: losers matam. Observe-se a fúria assassina do jovem racista que joga o carro em uma multidão: tenta passar por cima daquele mundo, daquelas vozes, daqueles corpos e da diversidad­e que perturba suas vísceras raivosas. Ato idêntico ao de outros terrorista­s mundo afora, como vimos em Barcelona, Alemanha ou França.

A supremacia branca é uma imbecilida­de datada que ainda pode acionar um carro assassino. Uma parte do problema está na Virgínia. Outra está nos que interpreta­m que o adjetivo da expressão Casa Branca tenha um significad­o mais amplo.

Muito obrigado a você, leitora, e a você, leitor. Chegamos à coluna de número cem. Tem sido uma experiênci­a única. Bom domingo para todos vocês.

A supremacia branca é uma imbecilida­de datada que ainda pode acionar um carro assassino

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil