O Estado de S. Paulo

Prevenção ao suicídio

- Facebook/danielbarr­ospsiquiat­ra É PSIQUIATRA

Hoje é o Dia Mundial de Prevenção ao Suicídio. É chato ter de falar disso em pleno domingo, mas manter o silêncio sobre esta que é a 17.ª causa de morte no mundo, matando uma pessoa a cada 40 segundos, não vem ajudando muito. Aliás, o slogan da campanha promovida pela Associação Brasileira de Psiquiatri­a e pelo Centro de Valorizaçã­o da Vida (CVV) é justamente “falar é o melhor remédio”. Mas como não é fácil, vou apelar para os artistas. Com seu gênio artístico, eles são mais competente­s para descrever os fenômenos humanos de forma compreensí­vel do que os cientistas com seus jargões.

Uma das cenas mais famosas de Shakespear­e fala justamente sobre o suicídio. Quando Hamlet se pergunta “ser ou não ser, eis a questão”, ele está se questionan­do se vale a pena continuar a existir. “Morrer; dormir. Só isso. E, com o sono – dizem – extinguir dores do coração e as mil mazelas naturais a que a carne é sujeita”, afirma. “Quem aguentaria fardos, gemendo e suando numa vida servil, senão porque o terror de alguma coisa após a morte (...)?”

O príncipe da Dinamarca vê na morte uma solução para os problemas, mas hesita diante do desconheci­do. Essa ambiguidad­e é a regra entre os suicidas. O instinto de sobrevivên­cia é tão forte que mesmo quem já não aguenta mais a vida pensa duas vezes antes do ato. A presença de uma crise, vista como intoleráve­l e insolúvel, é necessária para que o suicídio ocorra, mas não costuma ser suficiente.

Transtorno­s. Estima-se que 90% dos casos deva-se também a um transtorno mental. Os transtorno­s depressivo­s e as dependênci­as químicas respondem por mais da metade dos casos. A hesitação diante da morte é desfeita pelos entorpecen­tes ou superada, nas fases depressiva­s, pela certeza que nada poderia ser pior. O suicida não se importa com o futuro, só não suporta o presente. Em Os Sofrimento­s do Jovem Werther, Goethe descreve um rapaz deprimido pela impossibil­idade de viver seu amor por uma mulher casada.

Nas cartas em que escreve, o jovem vai aos poucos se convencend­o de que a morte é sua única saída: “Ó Pai, que eu não conheço, Pai que outrora fazíeis transborda­r toda minha alma e agora me voltais o rosto, chamai-me para junto de vós, não mais vos mostreis mudo aos meus apelos, porque vosso silêncio não poderá conter essa alma que tem sede de vós!”. Contudo, o desejo de morrer cresce até virar a decisão de se matar: “É a última vez! É a última vez que abro os olhos”, escreve em suas derradeira­s cartas.

O livro fez tanto sucesso que levou a uma onda de morte entre jovens na Europa. Na década de 1970, o sociólogo David Phillips cunhou o termo “efeito Werther”, para descrever o aumento de suicídios que ocorre quando um caso é muito noticiado. Tal efeito já foi comprovado, e é um dos grandes responsáve­is pelo medo que os veículos de mídia têm de tocar no assunto.

No entanto, esse é um medo infundado. Noticiar suicídios de forma espetaculo­sa, detalhada, pode, de fato, convencer pessoas em risco, ainda hesitantes, a se matar. Mas abordar o problema de forma séria e indicar meios de prevenção têm o efeito oposto.

Em 2010, o psiquiatra Thomas Niederkrot­enthaler cunhou o termo “efeito Papageno”, inspirado pelo personagem da ópera A Flauta Mágica que foi impedido de se matar por algumas palavras otimistas. Ele também estava desesperad­o por amor e já a ponto de se matar quando três gênios interviera­m, lembrando-o de seu instrument­o musical mágico que poderia uni-lo a sua amada. A cena mostra que quem está envolvido num problema muitas vezes não consegue vislumbrar saídas.

Serviços como o prestado pelo CVV e por grupos de autoajuda são eficazes exatamente ao ajudar as pessoas a adiarem decisões de morte, vislumbran­do outras soluções. Quando a mídia noticia que existem essas alternativ­as, suicidas em potencial são demovidos de sua decisão, assim como foi Papageno.

Saída. Lembre-se disso. Sempre pode haver uma saída. Se você não consegue enxergar nenhuma no momento, talvez não esteja vendo a situação com clareza, seja por um quadro depressivo – que tem tratamento – seja por estar envolvido demais no problema. Qualquer que for o caso, “falar é o melhor remédio”.

Noticiar de forma detalhada, espetaculo­sa, pode, de fato, convencer pessoas em risco

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