O Estado de S. Paulo

NA CONTRAMÃO DE DARWIN: TOM WOLFE

- Sérgio Augusto

O que nos separa dos outros animais?A racionalid­ade, certo. Além de certas peculiarid­ades, como, por exemplo, saber rir... Ok, as hienas também sabem rir, mas não falam; apenas conversam (ou ladram) entre si, não têm o poder da linguagem, como não o têm papagaios e macacos, que conseguem tão bem nos imitar. “A linguagem é o nosso Rubicão, e nenhuma besta ousará cruzá-lo”, bradou o renomado linguista Max Müller, ao final de uma palestra na Royal Institutio­n de Londres, em 1861. E desde então, só no cinema, primeiro com Walt Disney, as bestas cruzaram o Rubicão.

Em 1861 fazia apenas dois anos que Charles Darwin publicara seu tratado sobre a evolução das espécies. Mesmo acreditand­o que o homem foi criado por Deus à sua imagem e semelhança, e não por um processo de seleção natural que nos reconheceu descendent­es do macaco, os criacionis­tas não tinham por que se opor à tese de que só os humanos têm o poder da linguagem. Mas como adquirimos tal poder?

Os criacionis­tas não tinham por que se preocupar com essa questão. Os evolucioni­stas até hoje não chegaram a uma conclusão. Sabe-se que o cérebro humano evoluiu e nossa laringe adquiriu uma forma capaz de produzir sons que nossos primos primatas não conseguem emitir, mas desconhece­mos como isso ocorreu. Os linguistas também já entregaram os pontos.

Ano passado, o decano do Novo Jornalismo Tom Wolfe esbarrou na internet com um artigo sobre “o mistério da evolução da linguagem”, em que uma plêiade de evolucioni­stas pesos-pesados, entre os quais o linguista Noam Chomsky, comunicava ter desistido da questão de onde a fala – a linguagem – vem e como funciona. “Jamais ouvira falar de um grupo de especialis­tas se reunindo para anunciar que eram fracassado­s abjetos”, pensou Wolfe. Os especialis­tas só confessara­m, honestamen­te, seu fracasso; o “abjetos” foi uma ilação de Wolfe, que sacou na hora o tema de seu próximo livro.

Ali estava mais uma controvérs­ia – a incompetên­cia de naturalist­as, linguistas e biólogos – para ele aumentar seu rol de desafetos, chamar atenção da mídia e confeccion­ar outro best seller. Já comprara briga com os “radicais chiques” da esquerda intelectua­l nova-iorquina, o Olimpo literário americano, os praticante­s e teóricos da arte moderna (A Palavra Pintada) e os arquitetos contemporâ­neos (Da Bauhaus ao Nosso Caos). Com The Kingdom of Speech (aqui editado pela Rocco como O Reino da Fala) chegou a vez do establishm­ent científico. Polemizar é o seu “cheiro de napalm pela manhã”.

Louve-se a espantosa velocidade de Wolfe. Pelos meus cálculos (o livro foi publicado em agosto de 2016), ele gastou apenas seis meses para pesquisá-lo e concluí-lo. Mais ou menos leigo nos assuntos abordados, só lhe notei um erro. Crasso. Na página 9, atribui-se a Einstein a descoberta da velocidade da luz. Tsk, tsk, tsk. O autor da proeza foi o astrônomo dinamarquê­s Olaus Roemer, 203 anos antes de Einstein nascer.

Wolfe não duvida que a Terra seja redonda, mas, qual um quinta-coluna do criacionis­mo, desqualifi­ca a teoria do Big Bang como vagamente ridícula e reduz a Teoria da Evolução à “mera hipótese científica”, desprovida de prova material.

E os quase cinco anos que Darwin pesquisou a bordo do Beagle? E as evidências (anatomia comparativ­a, fósseis e distribuiç­ão geográfica das espécies etc) por ele apresentad­as? E as pesquisas hoje feitas em laboratóri­os com micróbios e insetos?

Para incrementa­r sua iconoclast­ia, Wolfe providenci­ou um Salieri evolucioni­sta para Darwin: Alfred Russell Wallace. Enfurnado numa ilha da Malásia, a coletar plantas e espantar mosquitos, Wallace teria chegado ao princípio da evolução por seleção natural antes de Darwin. É uma história fascinante. Com um desfecho melancólic­o: Wallace um dia virou espírita, passou a comunicar-se com o além e, zás!, recolheu-se de novo à sua insignific­ância.

Se Daniel Everett, o Salieri de Chomsky, mais parece uma versão masculina de Eve Harrington, a malvada de A Malvada, a culpa é do venenoso e perverso Wolfe, embora sua intenção primeira tenha sido sujar a reputação do sumo linguista do MIT, a quem apelidou de “Noam Charisma”. Esse carisma é, no mínimo, uma ironia. Wolfe não consegue olhar para o Chomsky linguista revolucion­ário sem ver o Chomsky militante de esquerda. O mais janota jornalista à direita de Gay Talese é um conservado­r tão imaculado quanto os alvos ternos que nunca tira do corpo e já foram motivo de piada até na série dos Simpsons.

Sobre a origem da fala – fruto da evolução da espécie, para Darwin, e uma qualidade inata dos humanos, para Chomsky – Wolfe tem sua própria tese. Os humanos teriam inventado a linguagem como um processo mnemônico, como um aide-mémoire. “Pedra... pedra... pedra”, ruminava o homem das cavernas para não esquecer de recolher uns cascalhos no meio do caminho.

Como então foi com o homem das cavernas que o romancista de A Fogueira das Vaidades pegou a mania de repetir palavras (“esperto...esperto...”, “bem abaixo abaixo abaixo abaixo”), uma das marcas registrada­s de seu estilo, também personalís­simo pelo acúmulo de pontos de exclamação e onomatopei­as de gibi (“grrrrekkk”, “riiippp”, “zum-zum hum-hum”). Mais uma provocação de que uma obra demolidora, O Reino da Fala, sobretudo pela vivacidade e o humor de Wolfe, é leitura prazerosa do início ao fim.

Sobre a origem da fala, Wolfe tem sua própria tese: humanos inventaram a linguagem como um processo mnemônico, um aide-mémoire

 ??  ?? Decano. Tom Wolfe, desde 1960 no ‘Novo Jornalismo’
O REINO DA FALA
AUTOR: TOM WOLFE
TRADUÇÃO: PAULO REIS
EDITORA: ROCCO
192 PÁGS., R$ 29,90
Decano. Tom Wolfe, desde 1960 no ‘Novo Jornalismo’ O REINO DA FALA AUTOR: TOM WOLFE TRADUÇÃO: PAULO REIS EDITORA: ROCCO 192 PÁGS., R$ 29,90

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