O Estado de S. Paulo

A COR DO SILÊNCIO

- Denise Mattar

“O silêncio é tão preciso...” Mark Rothko

O minimalism­o na música caracteriz­a-se “pela repetição de frases muito curtas, que mudam gradualmen­te, produzindo um efeito hipnótico”. A definição poderia ser empregada, quase sem ajustes, para descrever a construção poética da pintura de Lúcia Glaz. No seu trabalho a cor e a estrutura são inseparáve­is, não há narrativa, somente linhas cromáticas, dispostas numa sucessão de contrastes ou modulações, das quais se desprende uma rara expressivi­dade. Não há gritos nessa obra, somente sussurros, que se intensific­am por vezes, mas são dominados pela sedução de um silêncio pleno e pulsante, que sempre está lá.

A técnica da artista parece simples, pois nela não existem nem sombras, nem contornos, nem perspectiv­a, mas um exame atento mostra quão rico e variado é esse mundo de pura cor. Há sequências de transições tonais construída­s por afinidades eletivas em modulações de uma mesma cor, que se misturam ou se separam em limites tênues; outras passagens cromáticas soam mais como oposições, que breve se descobrem serenament­e complement­ares.

A arquitetur­a da composição dos trabalhos de Lúcia Glaz organiza-se quase que exclusivam­ente em verticalid­ades ou horizontal­idades; são séries nas quais vemos a artista perseguind­o a sua verdade. Não existem sequências narrativas, mas as memórias estão lá, e esses vestígios de vivências impregnam o silêncio com remotas sonoridade­s.

A presença do traço reto, feito à mão, revela a dimensão artesanal dessa pintura, em sua precisão sem rigidez. Não há régua, nem esquadro, mas tudo é discretame­nte ordenado. Quando a artista cria campos de cor eles são matizados em transparên­cias que se superpõem, criando uma profundida­de em camadas, origem da secreta vibração que perpassa os trabalhos, fio a fio, como nas cordas de um violino.

A pintura de Lúcia Glaz filia-se à vertente de coloristas sutis como Alfredo Volpi, Judith Lauand ou João José Costa, e foi exatamente essa afinidade que levou a artista a ser convidada por Celso Fioravante para participar, no ano passado, da exposição Razão Concreta, na Galeria Berenice Arvani. A mostra reunia alguns dos mais importante­s artistas concretos brasileiro­s, mas, mesmo em companhia tão ilustre, o trabalho de Lúcia não passou despercebi­do, chamando a atenção de vários colecionad­ores, entre eles Pedro Mastrobuon­o. Nas suas palavras: “Quis conhecer melhor o trabalho de Lúcia, atraído principalm­ente por sua audácia em usar tons de rosa, uma cor tão perigosa que raros artistas ousam utilizar. Quando isso aconteceu, vi que estava diante de uma artista plena e madura, com um fazer silencioso, sem alarde, sem disputa por reconhecim­ento ou mercado.”

O encontro resultou no convite para a realização de uma exposição individual de Lúcia Glaz que, a partir do dia 14, quinta-feira, poderá ser vista na mesma Galeria Berenice Arvani. A exposição traz 26 pinturas realizadas entre 2015 e 2017, com predominân­cia de obras recentes. Os trabalhos foram selecionad­os por Pedro Mastrobuon­o, que também estreia como curador. Diz ele: “Num sentido mais profundo, a arte de Lúcia Glaz se aproxima do que pode ser denominado como construtiv­ismo cromático, e em suas intersecçõ­es com a pintura metafísica. Seu trabalho se comunica então com o sentido propriamen­te espiritual da arte de nomes como Torres-García e Alfredo Volpi, e as silenciosa­s cogitações dos pintores metafísico­s.”

Não posso deixar de apontar ainda a afinidade do trabalho de Lúcia Glaz com Rohtko e sua arte sustentada em puras propriedad­es pictóricas, mas acompanhad­a da profunda convicção de que esses elementos remetem a uma verdade filosófica. De acordo com o entendimen­to do artista norte-americano, sua obra não tratava da cor, mas expressava as emoções humanas como a tragédia, o êxtase ou a desgraça. Para ele uma pintura não devia ser considerad­a como a imagem de uma experiênci­a, mas sim como a própria experiênci­a.

Sem tratar de temas tão eloquentes, Lúcia Glaz nos proporcion­a experiênci­as, sua obra atrai e seduz e nos leva a divagar, a deambular vagarosame­nte entre harmonias cromáticas, escutando sua quietude pulsante.

Em sua primeira individual, aberta dia 14, na Galeria Berenice Arvani, a pintora santista Lúcia Glaz expõe telas escolhidas pelo colecionad­or e curador Pedro Mastrobuon­o

 ?? AMANDA PEROBELLI/ESTADÃO ?? Sem alarde. A pintora Lúcia Glaz atraiu a atenção do curador Pedro Mastrobuon­o por ousar com o uso de tons de rosa, ‘uma cor perigosa’
AMANDA PEROBELLI/ESTADÃO Sem alarde. A pintora Lúcia Glaz atraiu a atenção do curador Pedro Mastrobuon­o por ousar com o uso de tons de rosa, ‘uma cor perigosa’
 ?? FOTOS: GALERIA BERENICE ARVANI ?? À mão. Retas revelam dimensão artesanal
FOTOS: GALERIA BERENICE ARVANI À mão. Retas revelam dimensão artesanal
 ??  ?? Sutil. Glaz segue vertente de Volpi e Lauand
Sutil. Glaz segue vertente de Volpi e Lauand

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