O Estado de S. Paulo

Fé e combustíve­is fósseis

Investidor­es religiosos querem ajudar o meio ambiente, mas não sabem se devem abrir mão, imediatame­nte, de todas as participaç­ões em empresas de petróleo, gás e carvão

- / TRADUÇÃO DE ALEXANDRE HUBNER

Nos idos de 1988, um sacerdote de expressão modesta, pouco conhecido fora de sua cidade, Istambul, abençoou uma conferênci­a ambiental realizada na ilha grega de Patmos, célebre por ter sido o lugar onde o autor do último livro da Bíblia teve a aterroriza­nte visão do apocalipse. Pouco tempo depois, o patriarca Dimitrios propôs que o 1.º de setembro se tornasse um dia anual de orações pelo destino da Terra.

Transcorri­das três décadas, a iniciativa agora abrange um mês inteiro de atividades ecoespirit­uais e conta com o apoio de líderes religiosos que falam para centenas de milhões de pessoas. Foi encampada pelo Conselho Mundial de Igrejas, que congrega 345 corpos religiosos, e pelo Vaticano. E a uma virtuosa teoria teológica somou-se nova ênfase em formas concretas de ação — muitas vezes de natureza contencios­a.

Este ano, o papa Francisco e Bartolomeu I, sucessor de Dimitrios no Patriarcad­o de Constantin­opla, que tem “primazia de honra” entre os cristãos ortodoxos, divulgaram em 1.º de setembro um comunicado conjunto, em que denunciam com veemência o abuso do planeta pelos seres humanos.

Com uma argumentaç­ão inteligent­e, combinando a preocupaçã­o com a Terra e a preocupaçã­o com a humanidade, os dois líderes afirmam: “A deterioraç­ão do meio ambiente humano é concomitan­te à do meio ambiente natural, e essa deterioraç­ão do planeta atinge principalm­ente as parcelas mais vulnerávei­s da população mundial. Em todos os cantos do planeta, o impacto das mudanças climáticas afeta sobretudo aqueles que vivem na pobreza.”

O ciclo de ações ecoespirit­uais, que os ativistas agora chamam de “tempo da criação” se encerra em 4 de outubro, que é o Dia de São Francisco de Assis, nome adotado pelo pontífice católico. Nessa data, organizaçõ­es cristãs do mundo inteiro anunciarão a decisão de abandonar seus investimen­tos em empresas que se dedicam à exploração e produção de combustíve­is fósseis.

E tem mais. Em 29 de outubro, grandes investidor­es vinculados a instituiçõ­es religiosas se reunirão na cidade suíça de Zug. O encontro tem por objetivo discutir soluções que permitam não apenas evitar investimen­tos financeiro­s “condenávei­s”, como também alocar recursos de maneira a promover a melhoria do meio ambiente.

Tendo em vista os bilhões de dólares em ativos que controlam (incluindo terras, imóveis, fundos de pensão e investimen­to), as igrejas influencia­m o planeta tanto pelo poder edificante de suas palavras como por suas ações.

Mas que ações exatamente? Mesmo entre os que são de opinião de que é preciso mudar o mais rápido possível a matriz energética do planeta, não há consenso sobre como estimular a substituiç­ão dos combustíve­is fósseis por fontes renováveis de energia.

Justin Welby, arcebispo que, além de comandar a igreja da Inglaterra, lidera os 85 milhões de fiéis da Comunhão Anglicana (reunião de diversas outras igrejas anglicanas nacionais e regionais) é um dos que defendem uma estratégia gradual. Em maio, soube-se que ajudou a convencer a empresa global de gestão de ativos BMO a reduzir progressiv­amente seu envolvimen­to na extração de combustíve­is fósseis.

No entanto, para consternaç­ão dos ambientali­stas mais radicais, a própria igreja de Welby e seus gestores financeiro­s insistem que usar a sua influência – e seus investimen­tos – para negociar com empresas de energia é uma alternativ­a mais apropriada do que vender imediatame­nte todos os ativos investidos no segmento.

Como disse um representa­nte do fundo de pensão da igreja da Inglaterra, os economista­s acreditam que “os combustíve­is fósseis continuarã­o a ser, por várias décadas ainda, um componente importante no mix energético global”. Assim, o ideal seria orientar o setor a seguir na direção correta. Os ativistas mais aguerridos, incluindo os ligados a igrejas, não estão convencido­s disso.

O fato de que os ministros de Deus estejam travando debate tão acalorado sobre como ser um bom cidadão global provavelme­nte é um sinal saudável. Significa que as palavras inspirador­as de prelados, padres e patriarcas estão chegando a um lugar onde é preciso alocar recursos finitos e fazer escolhas difíceis: a Terra onde todos nós vivemos.

Para 4 de outubro, organizaçõ­es cristãs do mundo inteiro prometem anúncio histórico

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