O Estado de S. Paulo

A Bíblia, com 25 séculos de debates, está presente na mídia, literatura, WhatsApp.

A Bíblia, com 25 séculos de debates, continua presente na mídia, literatura, WhatsApp

- LEANDRO KARNAL ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS

Setembro é o mês da Bíblia, segundo uma tradição recente do catolicism­o iniciada em Minas Gerais. É uma homenagem ao santo que encerra o mês e traduziu a Bíblia para o latim: São Jerônimo.

A coleção de escritos chamada Bíblia é, de longe, o texto mais influente da história ocidental. A importânci­a não depende de fé. As ideias, enredos, sistemas de pensamento e personagen­s do Antigo e do Novo Testamento­s constituem embasament­o amplo para quase tudo que emergiu nessa parte do globo nos últimos séculos.

Ah, mas eu não acredito em Deus... A força da Bíblia dialoga, mas não depende da fé. Exemplo: um ateu militante, José Saramago, dialogou com o texto sagrado muitas vezes, como em Caim e O Evangelho Segundo Jesus Cristo, apenas para citar dois livros. Ambos têm enredos e formas constituti­vas só compreensí­veis à luz do Gênesis ou dos Evangelhos. O filósofo Nietzsche, não exatamente um religioso devoto, foi um grande conhecedor do Novo Testamento. Outro homem não inclinado a muito incenso, Machado de Assis cita os textos sacros e constrói enredos como Esaú e Jacó a partir deles.

Se a Bíblia foi forte entre ateus, anticleric­ais ou céticos, imagine-se entre pessoas religiosas. Sem Bíblia não haveria Dante e sua Divina Comédia, Milton e seu Paraíso Perdido, Gil Vicente e seus autos e Vieira e seus sermões. Sem Bíblia, Michelange­lo não teria esculpido suas pietás ou pintado a capela Sistina. Parte da música ocidental nasce do hábito de musicar salmos. A Bíblia embasa o spiritual e o soul e, como tal, dialoga com o jazz do século 20. Os exemplos são infinitos. Nosso mundo assumiu a forma que tem por influência direta do livro dos livros.

De Agostinho a Pascal, como faríamos uma história da Filosofia que ignorasse o peso da tradição religiosa? Christophe­r Hill estudou mais: como a Bíblia constituiu a base de movimentos revolucion­ários como o Puritano, na Inglaterra do século 17 (A Bíblia Inglesa e as Revoluções do Século XVII, 1993). A propósito: Hill era marxista convicto.

A Bíblia serviu para fomentar a caça às bruxas, para fundamenta­r a Inquisição, para aumentar a caridade e para movimentos feministas contemporâ­neos que buscam nela a chave para desvendar a opressão sobre o feminino. Existe misoginia bíblica e violência bíblica. Da mesma forma, existem movimentos de contestaçã­o a toda opressão a partir de leituras bíblicas.

A Bíblia respaldou toda a pretensão metafísica e teocrática da Igreja e serviu também para que Lutero fizesse seu ataque ao poder do papa. Da Bíblia saem normas precisas para constituir uma alimentaçã­o kosher, ou seja, de acordo com os preceitos divinos, separando coisas puras de impuras. Da mesma Bíblia sai a famosa visão de Pedro que proíbe chamar de impuro o que Deus criou (At 10,15).

Aberta, a Bíblia estende um manto intenso e contraditó­rio, mas inequivoca­mente rico, de questões sobre nossas práticas e concepções.

Apesar de ter fragmentos mais antigos, foi no exílio da Babilônia que se redigiu grande parte da tradição do Antigo Testamento. A elite exilada dos judeus temia perder sua identidade e realizou o gesto épico de reunir as diversas versões orais num único texto. A tradução para o grego (Koiné) na Alexandria helenizada acrescento­u mais livros e reformou outros já escritos. O Novo Testamento foi inaugurado com as cartas de Paulo, depois o evangelho de Marcos e os demais textos, em grego, e ambientado­s no mundo do Mediterrân­eo Oriental. O estudo do texto bíblico e suas fontes diversas (fonte javista, eloísta, sacerdotal, fonte Q, etc.) está na base da interpreta­ção de textos (hermenêuti­ca) que é uma das grandes ferramenta­s da Filosofia e do Direito. O debate sobre interpreta­ção literal ou alegórica anima torcidas há séculos.

Você está citando Gênesis quando acende um fósforo Fiat Lux e vendo o Apocalipse quando assiste a uma ficção científica sobre o Armagedon. A Bíblia está na alta cultura, na popular e em lugares inusitados. “O Senhor é meu Pastor, nada me faltará” está entre aquelas frases que já não precisam mais da fonte: viraram bordões universais. Chico Buarque e Gilberto Gil citam Mateus e pedem que o Pai afaste o Cálice.

Para encarar tanta influência é preciso, no mínimo, uma paciência de Jó. Poderíamos também ostentar sabedoria salomônica, longevidad­e de Matusalém, vida desregrada de Jezebel, estar arrependid­os como Madalena, brancos como Lázaro ressurrect­o, suar sangue no Horto das Oliveiras ou ter a força de Sansão: tudo continuari­a saindo da canastra inesgotáve­l da Bíblia.

Os últimos livros do Novo Testamento foram concluídos no final do século 1.º da nossa era e com ajustes no século 2.º. Grosso modo, a Bíblia está pronta há cerca de 1.800 anos na sua versão cristã, contendo mais ou menos livros de acordo com quem montou o cânone. Para o Antigo Testamento e suas várias versões, as datas retrocedem mais alguns séculos. O texto desta crônica estará superado em alguns dias e terá desapareci­do em poucos anos. A Bíblia, com 25 séculos de debates, continua presente na mídia, na literatura, nos grupos de WhatsApp. É uma senhora ativa e forte, capaz de despertar paixões contraditó­rias.

Não é possível entender o mundo sem ter lido a Bíblia. Boa semana para todos nós.

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