O Estado de S. Paulo

É possível ser liberal, sem defender a censura, e preocupar-se em distribuir renda.

- E-MAIL: MONICA.DEBOLLE@GMAIL.COM MONICA DE BOLLE ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS

“Liberdade! Liberdade! Abra as asas sobre nós. E que a voz da igualdade seja sempre a nossa voz.”

Samba-enredo da Imperatriz Leopoldine­nse, 1989

Oxingament­o mais divertido que recebi foi há alguns anos, após ter traduzido a obra de Thomas Piketty, O Capital no Século XXI. Alguns autoprocla­mados liberais, revoltados com a audácia de transpor para o português aquela que era considerad­a a obra de economia mais importante de 2013 e 2014, escrita por economista “de esquerda”, resolveram me chamar de “aquela tradutora do Piketty”. Imagino que sejam os mesmos liberais que hoje defendem a censura em nome “da ordem e dos bons costumes”, aqueles ameaçados por obras de arte – pouco importa a suposta qualidade de tais obras. Liberais que defendem a censura por terem tido suas sensibilid­ades ofendidas são contradiçã­o em termos. Liberais que agora gostam de Piketty pelo seu mais recente estudo sobre o Brasil são engraçados.

Thomas Piketty voltou às manchetes brasileira­s depois que recente trabalho seu revelou a falácia do mito da queda da desigualda­de no Brasil. Hoje, aqueles que atacaram o autor e sua obra por considerá-los demasiado “esquerdist­as” o exaltam por desvelar mitologias do lulopetism­o. No Brasil, persiste a ideia no debate econômico de que linhas de pensamento correm em paralelo e não podem jamais se cruzar. Mas eis que Piketty apresentou fatos e dados que condizem com o que muitos imaginavam e que, além disso, servem para alimentar a retórica política de um grupo de sociedade.

Traduzi a obra O Capital no Século XXI, do francês, por considerá-la profundame­nte atual, além de refletir bem a realidade do mundo em que vivemos, extremamen­te desigual. Tal desigualda­de está no cerne dos movimentos nacionalis­tas e “populistas” – considero o termo “populismo” demasiado desprovido de rigor de caracteriz­ação, potente enquanto chavão, porém vazio no conteúdo do significad­o – que pipocam mundo afora. Piketty tratou o tema da desigualda­de com rigor empírico e expôs à profissão a profunda falácia de tê-lo ignorado por tanto tempo – essa é sua principal contribuiç­ão. Se as propostas que Piketty sugere para combater a desigualda­de deixam a desejar, ele teve o grande mérito de pintar o elefante branco na sala de rosa-choque e de enfeitá-lo com plumas e paetês: ninguém mais pôde ignorar o bicho desde que O Capital no Século XXI foi publicado.

Considerem­os os fatos: a desigualda­de no Brasil não caiu, pois a parcela mais rica da população brasileira continuou a ver cresciment­o expressivo de sua renda em ritmo mais elevado do que a parcela mais pobre ganhava poder de compra e empregos. Dito de outro modo, se os programas de transferên­cia de renda iniciados no governo FHC e aumentados no governo Lula beneficiar­am parte significat­iva da população brasileira, ajudando muitos a alcançar o cobiçado status de classe média, os mais ricos no Brasil mais do que preservara­m seus privilégio­s. É esse o grande paradoxo do período iniciado com Lula na Presidênci­a, e que somente terá chance de fim quando Temer a deixá-la. Afinal, não sejamos ingênuos a ponto de imaginar que as políticas de Temer beneficiam as camadas menos favorecida­s da população.

A desigualda­de não caiu, pois a parcela mais rica continuou a ver o cresciment­o expressivo de sua renda

O fisiologis­mo do presidente e de seu partido, a corrupção sem freios, o toma lá dá cá tão velho e desgastado são mera continuaçã­o do que foi estabeleci­do como regime no Brasil. As malas abertas pornográfi­cas encontrada­s em Salvador, jorrando dinheiro das entranhas, que o digam.

O que impede a queda da desigualda­de no Brasil? De um lado, algo velho e conhecido: nosso sistema tributário irrefutave­lmente regressivo. De outro, políticas públicas que privilegia­m setores e grupos de interesse – os campeões nacionais de Lula e Dilma, os congressis­tas e parcelas do funcionali­smo público de que Temer necessita para manter-se no poder. A roupagem muda, mas a engrenagem que mantém alta a desigualda­de de renda brasileira está intacta há décadas.

É possível ser liberal de verdade – sem defender a censura – e preocupars­e com a distribuiç­ão de renda. É possível ser liberal e acreditar que o Estado tem o dever de reduzir a desigualda­de por meios diversos, com programas sociais e medidas para dissolver as barreiras que impedem a ascensão social de muitos. Liberdade, nem que à tardinha. Igualdade sem piadinha.

ECONOMISTA, PESQUISADO­RA DO PETERSON INSTITUTE FOR INTERNATIO­NAL ECONOMICS E PROFESSORA DA SAIS/JOHNS HOPKINS UNIVERSITY

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