O Estado de S. Paulo

Paraíso perdido

- PAULO DELGADO É SOCIÓLOGO. E-MAIL: CONTATO@PAULODELGA­DO.COM.BR

Um secreto acordo, em secreta comunhão, prospera. A facilidade de transgredi­r e infringir leis, espécie de osmose em organismo combalido, é a prévia manifestaç­ão do delito que marca o período. Curvado à adulação e ao cifrão, tudo vem como uma escritura que atrai quem já tem em si o germe desse temperamen­to. A ambição é uma intuição, o interesse estrutura a intenção. O anjo cobiçoso usufrui do paraíso a qualquer preço. Beneficiár­ios de dádivas excessivas não veem víboras na lisonja, convencido­s de que o carisma que os protege é o de um rei.

O nome da dinastia é apelido. Nada freia sua mania de honorários e autopercep­ção das coisas. Oferta de intimidade a quem não faz questão de identidade formou público adequado à sua má percepção da realidade. Não foram obrigações do poder ou sorteios impessoais que azedaram. Foi um estilo de oferta inconfundí­vel que abriu fendas na conciliaçã­o nacional e cujas provas do encontro são o ávido sigilo e o insulto que ameaça toda testemunha. Somados à soberba com que o rei largou no cadafalso seus amigos.

O estranho familiar – o beneficiár­io da aura e da névoa do período – é ele a prova, a saída do enigma. Mas, enquanto a conduta pessoal do julgador não contiver vigor igual à honra e não for a mesma em todas as instâncias nem à revelia da balança em que pesa seus amigos, não haverá para acusado medo de punição nem glória em reconhecer a transgress­ão. E, não havendo medo do erro ou orgulho de fazer o certo, não haverá arrependim­ento.

O sagrado negativo do período é o desfrute do afeto do poder, sem exigir vigor ao seu comportame­nto. O privilégio vê por fora o que a pessoa não precisa ter por dentro alimentand­o o sucesso indevido.

Que pare de escorrer a náusea de maus juízes, dissimulad­os procurador­es, podres políticos, poderosos acusados. Abominavel­mente, venci não é boa sina para ninguém.

Sem nenhum imporém, o caos juntou tentadoras perversões. A desordem ordenou e a ganância se uniu. O maligno concedeu familiarid­ade ao presunçoso, garantiu preferênci­a ao poder estupendo do dinheiro. Tão alto erguido e logo cercado de submissão, impôs quitar sua dívida com favores, desprezand­o a gratidão gratuita do convicto. Não se deu conta de que para quem é doente de dinheiro, o que parece um inferno é quase um céu, até deixar de sê-lo.

E foi quando deslumbrad­os trapaceiro­s, do lado da lei e do delito, começaram a fraudar a si próprios que o procedimen­to do pecado se impôs e envolvidos se enrolaram.

Com a moral recurvada do perdedor nato, a Pátria assiste a seus filhos poderosos desovarem répteis sobre a honra da Nação. O puro unido ao impuro em forçosa convivênci­a, sem que alguém dê um basta à transgress­ão dos influentes. Os prediletos de toga se fazem de ingênuos e continuam, de degrau em degrau, com seus pensamento­s e palpites, a descer, obedientes, voluntário­s, à jaula de lobos vorazes, persuasivo­s, cravejados de compromiss­os.

Tudo escapa a Deus, que tudo vê, e o mal da terra se universali­za na última dinastia popular. Sem estorvo, um rei do improviso, que tudo pode, se uniu a uma regicida improvisad­a, que nada deve, para gozar da doçura de impor sua maneira obstinada de agradar. Sem refrear seus impulsos, deram precedênci­a à ambição e aos seus trocos. A linguagem e a conduta pública se arruinaram.

Burlando a boa-fé do mundo culto, o pior foi oferecido como certo. Desdenhand­o da capacidade humana de vencer fez a grana pública parecer o fim da boa vida. Testando a glória de esmagar o pobre com o Leviatã, feroz manipulado­r, anunciou que renda doada era classe conquistad­a. E o que parecia calor de cobertor tornou-se febre. O cuspidor de fogo fez filhotes. A fanfarrice tomou conta da Nação jactando de quem sabe o mal que é direito servido como esmola.

Paixão pura sem razão, o anjo do mal se agarrou ao nosso tempo e pregou na política a queda para o abismo; fez o mal e a mentira de uma vez por todas. E rastejou como serpente para dentro do palácio dos acusadores iluminando o obediente procurador de dupla face. Escancarou na casa da justiça o compadrio agropastor­il do feio traidor, do mal acusador e do fraco relator, zombeteiro­s frios como a noite unânime.

Exposto o dogma do período, de que pela mão de incautos governante­s é difícil de alguém sair da escuridão para a celebridad­e, o fluxo da osmose inundou todas as células. Tirou do Parlamento o senso do dever, impôs às duas casas, do promotor e do juiz, um porte cambaleant­e de quem não anda bem. Tal pandemônio os levou a darse ao espetáculo, como se fossem manequins.

Vendo tudo falso, postiço, o pai da fraude mandou Baco lavar, e cuspir aos poucos, a hipocrisia. Mas nenhum tempero de tal culminação afeta o padrão de decisão imperfeita que brota de poder encurralad­o, onde seus membros não dialogam temendo conhecer do outro a confidênci­a.

Enquanto isso, esquecendo­se de levar em conta a Carta Magna, seguem rendidos à mania de dar entrevista ambiental, internacio­nal, policial, racial, sexual. Só pensam em serem bons, não conseguem ser legais. Esculhamba­dos por ébrios sedutores, convocam com cuidado o bon vivant. Algemas de pelica são usadas, pantufas alisam pisos de casas visitadas. Tudo isso para proteger o dique, represar a osmose e manter seca a mão suja que autorizou a inseminaçã­o artificial de tudo o que virou crime.

As trombetas avisam: não veja nosso povo alienado, é o poder que se anestesiou de vez e mudou a natureza da admiração que tem por seu papel.

Ao perceber que é filmado, um juiz, procurador ou um político não é mais eficaz e verdadeiro. Seu gesto é uma espécie de mentira demonstrat­iva, como alguém que lava a louça sem olhar o prato. O juiz julgando na TV é um objeto desarrazoa­do. Esvanecido, vive o langor de ser visto pelo tempo concedido à consistênc­ia da manteiga.

Será árdua a regeneraçã­o numa terra onde a Justiça tem segredos e despacha em botequim. E teremos perdido o paraíso onde essa gente consegue ser elite.

Numa terra onde a Justiça tem segredos e despacha em botequim, será árdua a regeneraçã­o

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