O Estado de S. Paulo

No fio da navalha

- FERNÃO LARA MESQUITA JORNALISTA, ESCREVE EM WWW.VESPEIRO.COM

Oruído em torno da sessão de hoje do Supremo Tribunal Federal (STF) prova a crescente instrument­alização de tudo relacionad­o à Operação Lava Jato pela luta pelo poder, tanto das corporaçõe­s que se apropriara­m do Estado quanto das facções e quadrilhas a elas associadas.

Nem a anulação de fatos que deponham contra Temer nem a anulação de fatos que deponham contra Marcello Miller, a Procurador­ia-Geral da República (PGR) e a delação dos Batista. Uma coisa não implica necessaria­mente a outra. Nem, muito menos, a continuaçã­o ou não das delações premiadas. Estão em causa só as que porventura tenham sido comprovada­mente “armadas”.

Sobre as maquinaçõe­s de Joesley com Marcello Miller não há dúvida nenhuma. É o próprio Rodrigo Janot quem as denuncia agora. A questão ainda pendente é estabelece­r se o procurador­geral mandou prendê-los porque descobriu a conspiraçã­o que desconheci­a ou porque descobriu que tinham descoberto a conspiraçã­o que conhecia, agora com uma prova irremovíve­l do processo.

A resposta objetiva a essa pergunta é dada pela cronologia. O relacionam­ento entre os Batista e a PGR começa em setembro de 2016 com a Operação Greenfield, chefiada por Anselmo Lopes, que investigav­a desvios dos fundos de pensão e bancos públicos, modalidade na qual são os campeões dos campeões. De Anselmo os contatos sobem para Eduardo Pelella, chefe de gabinete de Janot, e evoluem para a negociação de uma delação mais ampla. Marcello Miller é o cabeça do GTLV (Grupo de Trabalho da Lava Jato) da PGR desde maio de 2015. Desde pelo menos fevereiro de 2017, segundo emails coletados como prova, advogados da Trench, Rossi e Watanabe discutiam com Joesley, em nome de Miller, o pagamento pelo “sucesso” da negociação de sua delação premiada com a PGR. A 19, 20 e 21 de fevereiro há três reuniões, a última com participaç­ão oficial da PGR, para discutir a delação premiada da JBS. Só dois dias depois, em 23 de fevereiro, é que Miller se lembra de registrar seu pedido de exoneração. Janot, segundo a versão oficial, não sabia nem se interessou em saber a razão dessa decisão de seu auxiliar. Em 2 e em 6 de março há registro de duas outras reuniões, entre eles na sede da PGR. No dia seguinte, 7 de março, Joesley grava a conversa com Temer no Jaburu que, ocasionalm­ente, preenche os dois únicos requisitos que podem levar um presidente em exercício ao impeachmen­t: obstrução de Justiça e crime cometido durante o mandato em curso. Miller só é oficialmen­te desligado do Ministério Público Federal dois meses depois, em 5 de maio. No dia seguinte, já dá expediente no novo emprego.

A 17 de maio a TV Globo estronda o “furo” da gravação no Jaburu. Para o dia seguinte, 18 de maio, estava marcada a primeira votação da reforma da Previdênci­a, que extinguiri­a algumas das prerrogati­vas “especiais” para as aposentado­rias públicas que explicam porque apenas 980 mil delas custam tanto quanto as 35 milhões de aposentado­rias pagas ao resto dos brasileiro­s somados. Por todas as contagens publicadas, a reforma seria aprovada por mais de 311 votos. No mesmo 18 de maio o País ficou sabendo que os irmãos Batista tinham montado operação de US$ 1 bilhão no mercado de câmbio e outra de venda e recompra maciça das ações de sua própria companhia na véspera da divulgação do escândalo e “ainda longe” do acordo de leniência.

Em 20 de maio, dois dias depois do escândalo, Vera Magalhães publica neste jornal reportagem com todos os pormenores agora confessado­s de viva voz por Joesley e Saud em sua “conversa de bêbados”, da história da relação entre Marcello Miller, a PGR e a JBS. Mas em 21 de maio Rodrigo Janot afirma que, embora tendo-se bandeado para o inimigo, Miller “não tinha atuado nessa negociação”, e ponto. Em 30 de maio, com endosso de Luiz Edson Fachin, Janot fecha o acordo com os Batista que, agora, a Comissão de Valores Mobiliário­s (CVM) investiga. Um mês depois de intensa polêmica sobre o perdão total aos dois réus pelo menos R$ 400 milhões mais ricos, o plenário do STF confirma a indulgênci­a plenária em 28 de junho. Somente em 5 de julho, com a persistênc­ia da celeuma, Miller desliga-se de Trench, Rossi e Watanabe.

Acontece que todo mundo foi gravado por Joesley Batista, inclusive o próprio Joesley Batista, e tanto ele quanto seu “braço direito”, Ricardo Saud, são funcionalm­ente “pre-milennials”. “Eu tava sem óculos, puxei pra cá, gravou (...) sei lá, liga pro Denilson, ele é que entende (...).” Daí para a frente a gravação é ácido puro e a trama parece ser do destino. Por engano, o áudio corrosivo é entregue à Polícia Federal como prova da defesa em 31 de agosto. A 5 de setembro, faltando 12 dias para ser jubilado e na véspera do feriadão da Independên­cia, o procurador-geral, em súbita “crise de consciênci­a”, vai à TV comunicar seu “drama íntimo” à Nação, reconhece que Marcello Miller é Marcello Miller, pede a prisão dele, de Joesley e de Saud e, em seu “medo de ter errado”, sai anunciando, em ritmo torrencial, a condenação de todo mundo que passou seu mandato inteiro tratando de não incomodar.

Quanto desse enredo é amor à justiça, quanto é dinheiro no bolso, quanto é a luta pelo poder de salvar o Brasil ou de continuar sendo salvo por ele; em que doses esses componente­s todos se misturam, personagem por personagem, são questões que podem ser tão fácil e objetivame­nte medidas quanto roubalheir­as e “contrapart­idas”. A impossibil­idade de diferencia­r métodos e objetivos de “mocinhos” e “bandidos” é que é a questão realmente espinhosa.

A sequência da “virada” do caso JBS abrir com a prisão apenas “temporária” de Joesley e Saud (máximo de dez dias contra a “preventiva” de extrair confissões que pode ser estendida por tempo indetermin­ado) e com a negativa de Luiz Edson Fachin de prender Marcello Miller, o potencial “delator bomba” plantado no coração do Poder Judiciário, está aí para confirmar. É da fundamenta­l questão da prevalênci­a da prova e do fato sobre o exercício da força (que hoje só o Judiciário detém) que se trata. Do restabelec­imento do limite ou da derrocada final de uma fronteira clara entre a civilizaçã­o e a barbárie, portanto.

A resposta ao porquê de Janot ter pedido a prisão de Joesley e Miller é dada pela cronologia

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