O Estado de S. Paulo

Museus já adotam a autocensur­a temendo os grupos de pressão

- Antonio Gonçalves Filho

Ocaso da exposição Queermuseu – Cartografi­as da Diferença na Arte Brasileira, cancelada pelo Santander Cultural de Porto Alegre, após protestos que viralizara­m na internet contra o conteúdo da mostra, não é o primeiro nem será o último a levantar a questão da censura às obras de arte por meio da pressão financeira. Há três décadas, o Congresso americano cortou o fundo de quase US$ 100 milhões do National Endowment for the Arts (NEA) por patrocinar mostras de artistas como os fotógrafos Robert Mapplethor­pe e Andres Serrano, após sofrer pressão de grupos como o America Family Associatio­n. Hoje, o NEA recebe a punição do governo Trump por ter promovido no passado exposições polêmicas como a mostra brasileira. Queermuseu foi montada com dinheiro da Lei Rouanet (R$ 800 mil), que será devolvido aos cofres públicos conforme promessa do Santander.

O exemplo do Santander Cultural de Porto Alegre se compara ao caso das poses homoerótic­as dos modelos negros de Mapplethor­pe ou das imagens anticleric­ais de Andres Serrano, que, em 1989, provocou escândalo ao exibir a foto de um crucifixo mergulhado num líquido âmbar que jurava ser sua própria urina. A mostra gaúcha tinha vários trabalhos de conteúdo considerad­o ofensivo pelas entidades que protestara­m contra a exposição, entre eles a obra Cena de Interior 2, de Adriana Varejão.

Versão paródica da shunga, a antiga gravura erótica japonesa, em que os personagen­s orientais são substituíd­os por senhores abusando sexualment­e de seus escravos, a obra de Varejão não é nem mais nem menos artística (talvez menos elaborada) que os originais de um Hokusai. Numa das gravuras do japonês, uma mulher faz sexo com um polvo – e vale lembrar que Hokusai era um homem do século 18, também autor de 36 líricas vistas do Monte Fuji. Nenhum museu civilizado proibiu até hoje a exibição do clássico Hokusai (1760-1849). Nem censurou sua zoófila imaginação.

Aqui mesmo em São Paulo, no Masp, temos uma exposição retrospect­iva de desenhos e pinturas de Pedro Correia de Araújo, ativo nos anos 1920 e 1930, em que a curadoria, talvez antevendo reações de movimentos como o Movimento Brasil Livre (MBL) – que precipitou o encerramen­to de Queermuseu –, cobriu com uma pequena cortina preta as cenas eróticas desenhadas pelo pernambuca­no. Para ver, o espectador deve levantá-la. É o mesmo caso de Hokusai e Varejão: devem os museus expurgar o conteúdo erótico de suas instalaçõe­s? Deve o mesmo Masp fechar as portas da retrospect­iva de Toulouse-Lautrec por exibir obras de sexo explícito entre mulheres?

O Masp encontrou uma forma de manter esse tipo de conteúdo acessível apenas a maiores de idade, adotando o procedimen­to de avisar que a mostra não é apropriada para todas as idades. Contudo, uma cortina preta não deixa de ser equivalent­e a uma tarja, a uma censura de conteúdo. É preciso, afinal, discutir se o Brasil vai ou não patrocinar mostras como a gaúcha Queermuseu ou imitar o exemplo de Trump.

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