O Estado de S. Paulo

Nóis não vai ser preso!

- ROBERTO DAMATTA ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS

Os tempos são pródigos em estampar infames símbolos locais. O que vai volta; o escondido aparece fulgurante. Colhemos o que plantamos. O País é assombrado por uma epopeia de arranjos impensávei­s pelo bom senso e rejeitados pela honestidad­e.

Mas tudo tem limite, esse estilo surge na obscena imagem – uma das fotografia­s mais pornográfi­cas que vi em toda a minha vida – de uma batelada de dinheiro. Eis que, no chão de uma sala vazia de um prédio residencia­l, oito malas e quatro caixas abertas expõem despudorad­amente maços de dinheiro. De “dinheiro vivo” – dinheiro nu, cru e roubado – que, sem dono ou banqueiro, jaz inerte e desamparad­o no vácuo de uma sala.

O cenário sugere um dinheiro com um dono tão poderoso que ele pode permanecer oculto. Tal como os tesouros enterrados por piratas, escravocra­tas sovinas e os administra­dores do patrimônio público – os donos das chaves do reino estatal – essa imensa quantidade de riqueza é impedida de circular em benefício da sociedade.

Poucas vezes na minha longa vida vi uma paisagem tão bizarra como a desse tesouro de R$ 51 milhões em busca de um dono. A cena das malas transborda­ntes de grana assusta na sua poética e libidinosa impessoali­dade de natureza-morta. Todo dinheiro escondido, enterrado ou imobilizad­o pela troca antissocia­l (a chamada propina), transforma dinheiro em podridão. Pois o dinheiro, como o poder, só têm existência legítima quando entra em circulação e, como as palavras, é posto ao alcance de todos. Dinheiro oculto e sem dono é – como os maus sentimento­s – um sintoma de pestilênci­a. Da peste que tortura mais do que a morte, porque o nosso formidável sistema legal tem o viés da impunidade – do privilégio, dos recursos e da prescrição.

Nada se encaixa melhor com essa tonelagem de dinheiro vivo do que a morte da ética e do bom senso. Da moralidade que tem sido impiedosam­ente assassinad­a pela aliança fluida e feita de sangue – na precisa e mafiosa linguagem do companheir­o ministro petista de todas as horas, Antonio Palocci, o italiano – entre o populismo sacana e as ambições empresaria­is que desonram e ajudam a demonizar qualquer sistema econômico. Ambos com horror à competição e ao mérito. Ambos apaixonado­s pela excelência monopolíst­ica e totalitári­a, que é o lado mais tosco de um capitalism­o de compadres desse velho Brasil de todas as “Brás” que, espero, estejam nos seus estertores.

As pencas de dinheiro pornografi­camente expostas são a vergonhosa contrapart­ida de um sistema político incapaz de domesticar afeitos, aventureir­os e picaretas operadores. Esses tais doleiros encarregad­os da mediação entre ideologias generosas e o brasileirí­ssimo desejo socialment­e aprovado de se arrumar por meio do Estado. Esse desejo, sejamos honestos, que sem jamais ter sido trazido à luz do dia consegue orquestrar o roubo familístic­o de recursos públicos como um projeto positivo. Se eu não fizer, outro vai fazê-lo – diz o mandamento.

Descobrir, como ordena o eufemismo policial e legal, quem é o dono do tesouro é mais uma história da carochinha. Pois num sistema hierárquic­o, no qual a República tem sido canibaliza­da por cargos que preservara­m prerrogati­vas e privilégio­s das velhas nobrezas, todos sabem que o dinheiro é da sociedade. E foi dela afanado – eis a traição – pelos que por ela foram eleitos para administra­r suas riquezas. A quebradeir­a do Brasil é tanto mais revoltante quando se sabe que ela foi um dos saldos daqueles que mais prometeram salvar o País.

Esse é símbolo maior desse tesouro perdido e achado num apartament­o. Nele está sinalizada a urgência de que o Brasil precisa redefinir o que é de quem e, ao fazer essa atribuição, alocar sérias responsabi­lidades reais (e não apenas legais) a seus administra­dores. Não se pode mais continuar com uma leitura do público como um espaço que, sendo de todos, não é de ninguém, pois é justo nessa cultura do quanto maior o cargo menores a responsabi­lidade e a possibilid­ade de punição que surgem esses empresário­s capazes de comprar milhares de políticos que se colocam permanente­mente à venda. São eles que – donos do poder e patrões das ideologias – proclamam em alto em bom som: nóis não vai preso! Queridos leitores, o erro crasso não é de gramática, é de democracia!

Descobrir quem é o dono do tesouro é mais uma história da carochinha

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