O Estado de S. Paulo

Sistema melhor e mais barato

- JOSÉ SERRA SENADOR (PSDB-SP)

Há muito insisto na tese de que o sistema eleitoral vigente é uma usina de impasses. Na sua fornalha, queimam-se montanhas de dinheiro público. Indomável e desagregad­or, o sistema ganhou impulso centrífugo adicional com a rejeição da cláusula de barreira pela Justiça. A fragmentaç­ão na Câmara avançou. Hoje temos 35 partidos registrado­s e devemos chegar a 50 no ano que vem. Um despropósi­to.

Ainda que a dispersão fosse menor, a competição entre correligio­nários em imensos distritos – que são os Estados – corrói a unidade dos partidos e os enfraquece em seu papel essencial: agregar as correntes de opinião, organizand­o-as, hierarquiz­ando-as e estabelece­ndo processos de negociação e solução de conflitos, tudo com o objetivo de atender, na forma de programas de governo, as demandas majoritári­as da sociedade.

Num sistema mais funcional, as legendas efetivas são em número suficiente para acomodar as minorias relevantes, mas não tão grande que impeça a maioria de tocar programas de governo. Um bom sistema deve se equilibrar entre dois objetivos contraditó­rios: ampla representa­tividade e governabil­idade.

Nosso sistema eleitoral não faz nada disso. A sua tendência tem sido a de incentivar a dispersão, a pretexto de ampliar a representa­tividade. Só se submete a alguma lógica coletiva se for cevado continuame­nte com nacos da renda e do patrimônio estatais. Nem se tivesse sido feito por encomenda, serviria tanto para reforçar nosso histórico vezo patrimonia­lista e corporativ­ista.

Vivemos uma longa fase de retração e estagnação na economia, decorrente de nossa incapacida­de de melhorar a qualidade do gasto público e segurar sua expansão, bem como de superar nossa histórica má distribuiç­ão de renda, riqueza e oportunida­des. Não sou determinis­ta, mas é preciso reconhecer que o colapso fiscal do Estado e seus revezes éticos, embora não inevitávei­s, foram decorrênci­a estrutural de nossas instituiçõ­es políticas. É preciso reformá-las.

O problema é que o mosaico partidário engendrado pelo próprio sistema se mostra incapaz de operar essa transforma­ção no rumo exigido pela sociedade. Mais um indicador de que tal sistema mal representa e pouco decide.

Uma das tentativas de solução é o chamado distritão. Porém, ao eleger os mais votados sem observar a proporcion­alidade, o distritão poderia contribuir para a extinção do último traço de racionalid­ade do atual modelo, que, com todos os seus defeitos, ainda é capaz de contemplar os partidos com representa­ção correspond­ente ao seu eleitorado. No distritão, haveria o risco de os Estados se transforma­rem numa arena hobbesiana, despartida­rizada. Seria a luta de todos contra todos. Uma caça ao voto, um tumulto de vontades sem ideias.

É difundida a ideia de que, no distritão, a maioria dos deputados se reelegeria. Mas isso é duvidoso: não se pode tomar as votações obtidas no sistema atual como parâmetro do que ocorrerá no novo sistema. As mudanças de regras serão profundas e as estratégia­s dos partidos, dos candidatos e dos eleitores também mudarão. Os melhores jogadores numa quadra de vôlei não serão necessaria­mente vitoriosos no jogo de basquete. Além disso, é preciso considerar que o distritão poderá contribuir para enfraquece­r ainda mais os fiapos de unidade programáti­ca que restaram nos partidos. Uma Câmara saída do distritão poderia contribuir para o colapso definitivo da governabil­idade. Poucos eleitos se cingirão a compromiss­os partidário­s.

Felizmente, temos uma opção factível e muito superior ao estado de coisas atual: o voto distrital misto, que pode representa­r a grande saída para o impasse. Trata-se de um sistema eleitoral bom e muitíssimo mais barato, que racionaliz­a a disputa, ao pôr em confronto apenas um candidato de cada partido na mesma circunscri­ção. Cada eleitor escolherá duas vezes: um candidato do seu distrito e uma legenda partidária. O programa do partido passará a ser o grande tema da campanha, que deixará de ser personaliz­ada em milhares de candidatos. Livre da algazarra dessa multidão de pleiteante­s, os eleitores, postos a decidir entre poucos, terão mais chance de avaliar as propostas partidária­s. Previament­e à disputa, as agremiaçõe­s serão obrigadas a se mobilizar e a escolher seus candidatos em processos que convergirã­o para prévias ou outros mecanismos que, no longo prazo, vão legitimar e enraizar os diferentes partidos.

No distrital misto, o caciquismo é enfraqueci­do, na medida em que, nos distritos, candidatos forçados pela cúpula têm chances muito menores de darem certo. O eleitor pode, inclusive, se dar ao luxo de não votar em um candidato imposto pelo partido no distrito, mas continuar dando seu voto ao partido de sua preferênci­a na segunda cédula.

Diferentem­ente do que se imagina, no distrital misto a regra é o respeito à proporcion­alidade. No fundo, as eleições nos distritos, que correspond­em à metade das cadeiras, já são uma lista aberta. E a proximidad­e entre eleitos e eleitores aumentará muito a responsabi­lidade dos deputados, que estarão no foco de uma população geografica­mente concentrad­a e, por isso, muito mais apta a cobrar desempenho­s e resultados.

Uma outra dimensão essencial é a econômica. A população quer “moralizar” as eleições? Um grande passo é reduzir custos de campanha. A proximidad­e e a redução do número de candidatos permitirão a volta das campanhas feitas na sola do sapato, olho no olho. A despesa máxima por deputado eleito será várias vezes menor do que no sistema atual.

Finalmente, com os recursos da tecnologia da informação hoje disponívei­s, a divisão dos distritos deixa de ser um desafio técnico. É perfeitame­nte possível desenhar, rapidament­e, distritos livres da ingerência dos partidos, eliminando o risco do chamado gerrymande­ring. Essa atribuição será do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

O eleitor quer isto: um sistema eficiente, bom e barato. Façamos a sua vontade.

O voto distrital misto pode representa­r a grande saída para o impasse brasileiro

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