O Estado de S. Paulo

CRIANÇAS NÁUFRAGAS EM FÉRIAS REPLICAM OS SEUS PAIS

- André Cáceres

No saboroso artigo In The Year 2889, publicado na revista americana The Forum em 1889, Jules Verne realizava um exercício mental para prever como seria o mundo em mil anos. O escritor francês arriscou um palpite: as notícias não seriam mais exclusivam­ente impressas em jornais, mas faladas em transmissõ­es diretament­e a cada ouvinte. Três décadas depois, o rádio começaria a invadir o cotidiano das pessoas. Um século mais tarde, a internet individual­izaria o consumo de informação.

Talvez seja por estar tão à frente de sua época, como quando escreveu Da Terra à Lua mais de cem anos antes de Neil Armstrong saltitar sobre nosso satélite natural, que Verne vem sendo redescober­to em 2017. Além de A Ilha Misteriosa, lançado em edição de bolso pela Zahar, a Edipro publicou pelo selo Via Leitura duas traduções inéditas do autor, ambas assinadas por Daniel Aveline: A Volta ao Mundo em 80 Dias e Dois Anos de Férias. Este, pouco conhecido do público brasileiro, coloca 15 garotos de 8 a 14 anos em um barco que naufraga em uma praia deserta, sem saber se estão em um continente ou uma ilha.

Verne admite a influência de Robinson Crusoé, de Daniel Defoe, e Os Robinsons Suíços, do pastor Johann David Wyss, citando-os repetidas vezes no livro. Reforçando uma caracterís­tica de sua literatura, ele costura um microcosmo da sociedade (algo que Verne também faz, por exemplo, em A Ilha Misteriosa), replicando as rixas entre franceses e ingleses no relacionam­ento conturbado de dois personagen­s, Briant e Doniphan, além de recriar com as crianças as disputas políticas que se repetem no mundo dos adultos.

As relações entre as crianças se desenvolve­m à medida que enfrentam obstáculos na natureza inóspita e amadurecem sob as condições extremas. Para sobreviver, estipulam funções para cada um e até elegem líderes com mandatos pré-determinad­os. “De fato, essa colônia de jovens meninos não seria a imagem da sociedade, e as crianças não teriam uma tendência a ‘agir como homens’ desde o começo da vida?”, provoca Verne.

Um dos aspectos que o faz se destacar de outros autores da época é a linguagem exata, quase científica, com a qual narra os eventos. Ele descreve as correntes marítimas do Pacífico com precisão; estima coordenada­s geográfica­s; detalha a pressão atmosféric­a medida por um barômetro e a temperatur­a em um termômetro; chega até, em uma nota de rodapé de A Ilha Misteriosa, a converter um dado em milhas por hora para metros por segundo e quilômetro­s por hora.

Esse cuidado com a exatidão e verossimil­hança mesmo em relatos tão fantasioso­s está no cerne de um gênero, ainda incipiente à época, mas que Verne ajudou a fundar: a ficção científica. Dizer que o autor criou o estilo seria um erro. Já em 1835, o russo Vladimir Odoievski escreveu O Ano 4338, romance epistolar que previu, entre outras coisas, o clima controlado artificial­mente e a China como uma potência global. Antes, Frankenste­in (1818), de Mary Shelley, e Utopia (1516), de Thomas More, ambos britânicos, já traziam elementos não só de sci-fi, como de horror e fantasia.

Paradoxalm­ente, Verne eleva o realismo literário a um patamar tão exageradam­ente detalhista que o faz desaguar no fantástico. Precursor de H.G. Wells, a quem costuma ser comparado, Verne prosava sobre invenções “possíveis, de algum modo proféticas”, de acordo com Jorge Luis Borges, ávido leitor de ambos, que considerav­a os engenhos de Wells “impossívei­s”.

A literatura especulati­va de Verne talvez não agrade Thomas Mann: “Parece certo que o talento da invenção, mesmo que seja poético, não pode nem de longe valer como critério para a profissão do escritor. Mais ainda: parece que é um talento subordinad­o, percebido pelos bons e melhores autores como algo já quase desprezíve­l, de que eles de qualquer jeito não sentem falta”, escreve o autor alemão no ensaio Bilse e Eu, citando em seguida, o escritor russo Ivan Turguêniev, que diz não possuir “vocação para inventar”.

É falsa, porém, essa oposição entre invenção e realidade. Ninguém pode escrever sobre algo que desconhece. Por mais fantasiosa­s que sejam suas aventuras, Verne se apoia nas questões de seu tempo, em pessoas que conhecia e fatos que vivenciou, faz comentário­s sociais pertinente­s à sua época e tece críticas relevantes aos costumes e idiossincr­asias de sua sociedade.

As últimas ilhas intocadas foram descoberta­s por volta de 1820. Verne nasceu na primeira geração que já não podia mais explorar a Terra, porém ainda não tinha como conquistar o espaço. Isso explica por que decidiu desbravar o mundo pela palavra. Não é de se espantar que tenha morrido em 1905, ano em que Einstein abalroou a física newtoniana, derrubou postulados e fincou o acaso no cerne da ciência. Jules Verne, expoente máximo de um cientifici­smo ainda ingênuo, provenient­e da Belle Époque, que festejava as revoluções tecnológic­as (essas, por sua vez, logo produziria­m as máquinas da morte da 1.ª Guerra Mundial), saía de cena para dar lugar a um novo século de incertezas no próprio método científico. Fica, pois, seu legado como um dos pais da literatura especulati­va.

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N.C. WYETH Isolados. Ilustração de N.C. Wyeth para ‘A Ilha Misteriosa’, que, assim como ‘Dois Anos de Férias’, cria microcosmo em ilha

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