O Estado de S. Paulo

Sob nova direção

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As palavras de Raquel Dodge dão a esperança de que a PGR deixe de ser a fonte de instabilid­ade e de violação de direitos básicos que tanto mal fez ao País nos últimos tempos, sob a chefia de Rodrigo Janot.

A nova procurador­ageral da República, Raquel Dodge, encerrou seu discurso de posse dizendo que os valores que ela defende e que definirão suas ações à frente do Ministério Público “estão na Constituiç­ão”. Ela prometeu “muito trabalho, honestidad­e, respeito à lei e às instituiçõ­es, observânci­a do devido processo legal e responsabi­lidade”. São palavras que dão a esperança de que a Procurador­ia-Geral da República deixe de ser, a pretexto de dar combate sem quartel à corrupção, a fonte de instabilid­ade e de violação de direitos básicos que tanto mal fez ao País nos últimos tempos, sob a chefia de Rodrigo Janot.

Raquel Dodge enfatizou seu compromiss­o em fazer cumprir a função constituci­onal do Ministério Público, para assegurar que “todos são iguais e todos são livres” e que “o devido processo legal é um direito”. Pode parecer uma platitude, mas, nestes tempos em que delações de criminosos são aceitas como prova pela Procurador­ia-Geral, num açodamento que compromete a defesa dos réus e os condena previament­e perante a opinião pública, é adequado reafirmar o respeito por essas noções básicas do direito e do papel do Ministério Público.

Ademais, Raquel Dodge lembrou que ao Ministério Público cabe muito mais do que combater a corrupção. “Em todos os lugares do Brasil e em temas muito diferentes, há muito trabalho para o Ministério Público”, disse a nova procurador­a-geral, citando a incumbênci­a “de zelar pela higidez do sistema eleitoral, de coibir a violência doméstica, os crimes no trânsito que ceifam tantas vidas, os homicídios e os crimes de corrupção”. Ela mencionou ainda, entre os desafios da instituiçã­o, “as elevadas taxas de homicídios, a violência urbana e rural, as falhas na qualidade da escola (...) e a ausência de serviços básicos de saúde onde são necessário­s”.

A lembrança da múltipla gama de assuntos sobre os quais o Ministério Público deve se debruçar serve como contrapont­o à ênfase dada, nos últimos tempos, ao combate à corrupção. Como se sabe, vários procurador­es da República, especialme­nte Rodrigo Janot, parecem ter entendido que sua tarefa primordial, talvez única, era depurar a política. Para os engajados nessa missão, nada havia de mais importante do que isso, e todos os políticos passaram a ser suspeitos.

Ao sugerir que as atribuiçõe­s da Procurador­ia-Geral da República vão muito além dos casos de corrupção, Raquel Dodge ajuda o País a sair dessa espécie de transe, em que problemas cruciais são relegados a segundo plano ante a urgência da campanha contra a corrupção – como se tudo dependesse do resultado dessa cruzada.

Raquel Dodge deixou claro que não menospreza­rá a luta para pegar os corruptos, mas lembrou que o Ministério Público tem muitas atribuiçõe­s e que “é preciso desempenha­r bem todas essas funções, porque todas ainda são realmente necessária­s”.

Nota-se, nas palavras de Raquel Dodge, um alvissarei­ro chamamento ao equilíbrio, necessário depois de tanto radicalism­o justiceiro. O contrapont­o entre o primeiro dia da nova procurador­a-geral e o último de seu antecessor, Rodrigo Janot, não podia ser mais eloquente. Em mensagem de despedida, Janot começa citando a famosa frase da tragédia Hamlet, de Shakespear­e, “há algo de podre no reino da Dinamarca”, para dizer que a Dinamarca, que “apodrecia com a corrupção moral e política”, poderia ser “o Brasil deste século”. É uma generaliza­ção absurda, da qual, obviamente, só escapam as vestais que Janot julga representa­r.

Ao sair, o ex-procurador-geral, que não foi à posse de Raquel Dodge alegando “motivos protocolar­es”, trocou suas famosas flechas por uma metralhado­ra. “O Brasil é nosso!”, bradou Janot, apontando sua arma para “a parcela de larápios egoístas e escroques ousados que, infelizmen­te, ainda ocupam vistosos cargos em nossa República”. O destempero de Janot não ficou apenas nas palavras. Um de seus atos finais como procurador-geral foi enviar ao Supremo Tribunal Federal uma papelada – imagina-se que sejam processos – que o setor correspond­ente do tribunal não será capaz de catalogar antes de decorridos dez dias. Por que acumulou essa papelada?

Não se sabe como Raquel Dodge se sairá à frente do Ministério Público, mas será um grande avanço se não tiver seu antecessor como modelo.

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