O Estado de S. Paulo

Fala reforça ideia do Ministério Público como tutor do cidadão

- Roberto Romano PROFESSOR DE ÉTICA DA UNICAMP

Oprimeiro ponto que ressalta do discurso de Raquel Dodge, no meu entendimen­to, é, além de uma atitude corporativ­ista, a ideia de que o Ministério Público tem uma função de tutor da cidadania. Acho isso um erro político fundamenta­l. O Ministério Público não tem esse direito, a Constituiç­ão não lhe dá esse direito – nem poderia. Ele tem como função acompanhar o exercício correto dos Três Poderes e da própria sociedade. Mas ele não tem o direito de ditar normas, ditar caminhos para essa sociedade. Isso é usurpação de soberania.

O Ministério Público tem tido essa tentação desde a Constituiç­ão de 1988. Foi extremamen­te bem-vinda a colocação da autonomia do MP diante do Executivo. É um fato alvissarei­ro, mas a partir desse momento o MP não conheceu limites de sua atuação nesse sentido de caminhar para ser um tutor das causas públicas.

Se você tem um tutor, por que você vai precisar se organizar, amadurecer um projeto, por exemplo? Você vai ter os promotores que vão resolver o problema para você.

O Ministério Público, muitas vezes, se arroga um poder que não foi conferido pelo voto. O procurador da República Deltan Dallagnol disse recentemen­te: “Não temos votos, mas temos concurso”. Concurso não é princípio de legitimida­de política nenhuma. A pessoa pode ser concursada com brilhantis­mo, mas o concurso não é sinônimo de soberania.

Somente quando os Três Poderes estão operando juntos, numa harmonia tensa, é que o resultado será a soberania. Portanto, o que nós temos notado é que o MP tem ido além dessa harmonia tensa. Ele tem caído na tentação de transforma­r a sua autonomia numa soberania, nessa tutelagem do cidadão.

O tom do discurso é alvissarei­ro, é bom, é positivo, mas seria muito importante acompanhar­mos o que vai ser feito a partir de agora. Nesse caso, quando ela fala de estabilida­de, é preciso pensar se ela fala nesse plano da ótica e retórica do governo. A procurador­a-geral da República deveria dar uma dimensão de Estado a essa estabilida­de. Estado e estabilida­de são a mesma coisa. Você mantém a luta social, os interesses do agrupament­o humano, por exemplo, dentro dos limites dados pela lei. Esse é o Estado. A crise é nossa, é do Estado, mas não temos que ter salvadores e diretores espirituai­s.

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