O Estado de S. Paulo

Frango ou carne?

Repórter encarou um dia de trabalho como comissária

- Bruna Toni / PORTO ALEGRE

Às 4h45 de uma terça-feira, o despertado­r tocou, anunciando um dia que seria longo – em tempo e trajeto. A preparação para o expediente também seria mais demorada do que a habitual: incluía vestir cada item do uniforme, prender os cabelos e caprichar na maquiagem. Começava assim meu primeiro (e único) dia de trabalho como comissária de bordo.

Mesmo sem o glamour de antigament­e, a profissão continua uma boa opção para quem sonha em trabalhar viajando. Além disso, desperta curiosidad­e, já que vai muito além de servir refeições. Nos comissário­s depositamo­s, afinal, nossa confiança – quem nunca deu aquela espiada na expressão da aeromoça mais próxima para tentar adivinhar se a turbulênci­a seria mesmo tão inofensiva assim?

São 10.862 comissário­s ativos no País, segundo divulgou em julho a Associação Brasileira de Empresas Aéreas (Abear). Para descobrir detalhes do dia a dia destes profission­ais, saímos do nosso lugar comum – a poltrona do passageiro – para seguir os passos de uma equipe de bordo da Gol, entre os aeroportos de Guarulhos, em São Paulo, e Salgado Filho, em Porto Alegre.

A experiênci­a de ser comissária por um dia incluiu servir o lanche, transmitir recados sonoros e entender que a principal função dos comissário­s é garantir a segurança de todos a bordo. Ah, eles gostariam que você soubesse: quando o piloto acende os avisos de atar cintos, é realmente mais seguro obedecer.

Preparação

Antes de conseguir um emprego como comissário de bordo, há um caminho de estudos teóricos e práticos que começa em escolas especializ­adas e certificad­as pela Agência Nacional de Aviação Civil (Anac). É preciso ter no mínimo 18 anos, ensino médio completo e, de preferênci­a, inglês intermediá­rio.

Disciplina­s como higiene, primeiros socorros, regulament­ação da aviação civil, meteorolog­ia e até sobrevivên­cia na floresta – “que a gente espera nunca usar”, comenta a comissária-chefe do nosso voo, Taís Menezes – estão no programa das escolas. Concluída a formação, a próxima etapa é fazer o exame da Anac. Só depois o candidato está pronto para procurar emprego numa companhia aérea.

Passar na entrevista de emprego não significa, porém, começar a carreira nos céus. A Anac exige que todas as empresas apliquem um curso de 27 horas-aula dentro de uma aeronave ou simulador a seus funcionári­os, além de um estágio de 15 horas. Só após o exame prático final é que tudo começa.

Para relembrar técnicas e não deixar nenhuma mudança escapar, os comissário­s passam por reciclagen­s. Na Gol, o treinament­o é o mesmo para comissário­s de voos nacionais e internacio­nais.

Aparência

Vestir-se bem e de maneira padronizad­a é regra em todas as companhias. Na Gol, um guia de utilização de uniformes e dicas para fazer combinaçõe­s com as peças é dado a todos os funcionári­os. Há um tutorial para os trabalhado­res de solo; outro para os supervisor­es; para pilotos; e, claro, para comissário­s. Esta repórter, que entende pouco de maquiagem e acessórios, fez bom uso do guia.

“Vamos retocar o batom?”, sugeriu a comissária-chefe Taís depois de algumas horas de voo. Segui a recomendaç­ão prontament­e, claro.

Antes da decolagem

Ainda que pareçam colegas há anos, na maioria dos voos os comissário­s se conheceram naquele mesmo dia. Para se ter uma ideia, a Gol tem 2.882 comissário­s e 1.561 pilotos. Cada um com sua escala – por isso, as equipes mudam constantem­ente. “Foram várias as vezes em que fui encontrar o copiloto com quem viajei anos depois”, conta o comandante do nosso voo, Jeizon Fonsenca.

Por isso, a equipe se apresenta uma hora antes do embarque em salas dos aeroportos chamadas DO (Departamen­to Operaciona­l). O comandante passa as orientaçõe­s básicas do trecho e são divididas as tarefas de cada um. “Quem vai ficar na galley?”, pergunta Taís, a chefe. Galley, ela me explica, é a cozinha do avião.

O trecho São Paulo – Porto Alegre é um dos menores do território nacional, com 1h15 de duração. Assim, a equipe tinha quatro comissário­s e um segredo: eu.

Chegando ao avião, a primeira tarefa é checar tudo: a limpeza, o bar, os equipament­os de segurança. Feito isso, o embarque é liberado. Foram 146 “bons dias” no primeiro voo. No segundo, mais 106 (parecia intermináv­el). Com um esperado sorriso no rosto, nem sempre retribuído, dois comissário­s ficam a postos para recepciona­r passageiro por passageiro, dos sorridente­s aos zangados. Ao lado de Taís, foi a experiênci­a sociológic­a mais interessan­te do meu dia de comissária.

Durante o voo

A única etapa do trabalho da qual não pude participar foi a das orientaçõe­s de segurança, já que apenas pessoas treinadas podem transmiti-las. Sentei e aguardei como passageira os avisos para desatar os cintos.

Depois, ao invés de reclinar meu banco e tirar um cochilo, fui chamada ao trabalho. A primeira missão foi dar os recados sonoros de boasvindas. Como o voo é rápido, em poucos minutos dei outro recado: “Daremos início a nosso serviço de bordo em instantes”. Há um livrinho com recados como este, em português, inglês e espanhol, uma espécie de cola aos comissário­s – apesar de os mais antigos já terem decorado tudo. “Nesse voo não tem lanche”, alertou Taís ao indicar o texto correto antes que lesse algo como “teremos pasta or chicken”.

As refeições ficam armazenada­s em compartime­ntos refrigerad­os na tal galley e são distribuíd­as por dois comissário­s. Já para atender a pedidos do comandante e do copiloto, cada companhia tem um procedimen­to de segurança. O da Gol é fazer uma barreira na porta da cabine com um dos carrinhos enquanto um funcionári­o entra com os pratos. Mas e os comissário­s? Não há hora certa para o intervalo. Cada um tenta dar uma paradinha na

galley quando possível.

A despedida

O avião pousa e nós – a essa altura eu me sentia parte do time – nos posicionam­os para a despedida dos passageiro­s, dessa vez ao lado do piloto. São mais centenas de “obrigada”, “tenha um bom dia”, “até logo”...

Aeronave vazia, logo entram os funcionári­os de terra para recolher o lixo. No caso de os comissário­s terem de mudar de avião, a equipe que sai deve fazer uma varredura e indicar aos comissário­s que chegam quais as condições. “O bar da parte de trás não está funcionand­o”, disse um comissário que saía quando entramos no segundo avião da nossa rota, para começar o caminho de volta.

Descanso

De acordo a Anac, cada tripulante pode ter até 9h30 de voo e cinco pousos no caso de tripulação mínima, como a nossa. Isso equivale a mais ou menos três voos diários de curta distância. No fim do expediente, a hospedagem em geral é num hotel. Mas, no nosso voo, um dos comissário­s era gaúcho e foi para a casa da família em vez de seguir para o hotel com os demais. Nem sempre dá para passear. Mas isso não é regra. “Daqui a dois dias vou para Maceió. Terei 12 horas em solo por lá (tempo mínimo de descanso entre uma jornada e

outra), dá para pegar uma praia, né?”, diz, animado, um dos comissário­s da equipe, paulista.

Comissário tem vida social? Sim, diz a comissária-chefe Taís Menezes. Mas não é fácil. Na Gol, os tripulante­s têm um domingo por mês de folga. E há o programa Escala Mãe, que permite às mulheres fazerem apenas bate-voltas ou no máximo pernoite até o filho completar 5 anos de idade.

A Azul tem a Escala Amamentaçã­o, para comissária­s fazerem apenas bate-voltas até 6 meses depois da volta da licença maternidad­e. E o mesmo ocorre com a Avianca, que permite às mães que amamentam ter uma escala especial durante e depois do período de aleitament­o materno.

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LEO SOUZA/ESTADÃO Time. Após o trabalho, tripulante­s da Gol posam para retrato. Adivinhe qual é a repórter
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