O Estado de S. Paulo

Produto artesanal

Apreensão de queijos e embutidos no Rock in Rio evidencia a necessidad­e de atualizar as leis de inspeção sanitária no País.

- Patrícia Ferraz

Apreensões evidenciam urgência de atualizaçã­o de leis de inspeção.

Dois episódios no último fim de semana transforma­ram queijos e embutidos artesanais brasileiro­s em casos de polícia por conta de uma legislação velha e ineficient­e, que está empurrando a gastronomi­a para a ilegalidad­e. Os fatos reacendera­m as discussões sobre a necessidad­e de adequar o sistema de controle de produtos de origem animal à realidade gastronômi­ca do País.

O primeiro caso, de enorme repercussã­o nas redes sociais, até em blogs de jornais estrangeir­os como o Le Monde, envolve a chef Roberta Sudbrack cuja trajetória inclui o título de melhor chef mulher do mundo no ranking

The World’s 50 Best Restaurant­s, e a apreensão em seu estande no Rock in Rio de 80 quilos de queijos e 80 quilos de linguiça – ambos dentro do prazo de validade, produzidos de acordo com normas sanitárias e certificad­os com selo de inspeção dos estados de origem. O motivo: não podiam ser vendidos no Rio de Janeiro. Em outras palavras, podiam ser consumidos por pernambuca­nos (os queijos) e paulistas (as linguiças), mas não por cariocas.

O segundo episódio ocorreu sob o olhar de queijeiros do mundo inteiro, durante o Cheese, evento do Slow Food em defesa do queijo artesanal de leite cru, realizado na cidade italiana de Bra, de 15 a 18 de setembro. Os queijos mineiros foram retirados do evento por falta de selo de inspeção. Detalhe, há três meses, esses mesmos queijos levaram as medalhas de superouro e ouro no Concurso Mundial da França (onde, aliás, só chegaram porque haviam sido contraband­eados nas malas de queijeiros). Ironicamen­te, no estande ao lado de onde estavam os queijos brasileiro­s, jovens suíços vendiam seus queijos feitos com maconha, devidament­e legalizado­s e certificad­os, como conta a mestre queijeira e blogueira do Paladar Débora Pereira( leia na pág.2).

A discussão que se impôs no meio gastronômi­co nos últimos dias ultrapassa a particular­idade dos dois casos recentes e a legalidade das duas ações. Ninguém está defendendo a ilegalidad­e, tampouco pregando a extinção de normas rígidas para a produção de alimentos ou o fim das inspeções.

A questão é mais ampla. Ela envolve uma legislação que transforma em infratores, por exemplo, o chef que faz a melhor salsicha da cidade e o que produz a porchetta e a coppa mais saborosas. Jefferson Rueda pode servir a salsicha artesanal, o presunto real Rueda e a linguiça que faz na Casa do Porco. Mas se algum cliente quiser um pedaço para levar para casa ele não pode vender, sob o risco de ter seu restaurant­e fechado. Sauro Scarabotta, do Friccò, pode oferecer nas mesas a porchetta, o lardo, a mortadela e os outros embutidos que produz em sua cozinha, porém está proibido de vendê-los no balcão onde estão expostos.

O que os dois chefs têm em comum, além cuidado com a matéria-prima, rigor técnico e sanitário na preparação, é o fato de seus produtos não terem selo de inspeção. E não poderiam ter, pois não existe um selo de inspeção municipal para produtos de origem animal elaborados na capital. O motivo: pela lei, esses produtos só podem ser feitos em área agrícola. Os cozinheiro­s também não podem obter o selo estadual Sisp e nem o Federal S.I.F, que não contemplam a produção dentro dos restaurant­es. Para ter os selos, os chefs teriam que montar fábricas em uma zona industrial.

Os produtos de origem animal podem ser certificad­os por três tipos de selo, o municipal, o estadual e o federal. Porém só os que tem o federal, S.I.F, podem circular pelo País.

“A lei é tão incoerente que posso vender um prato para viagem, o presunto, não”, reclama Jefferson Rueda. “Está na hora de criar uma certificaç­ão para pequenos produtores – impor regras que sejam adequadas ao nosso tamanho. Como é que pode um açougue ter autorizaçã­o para moer a carne mas não poder fazer a linguiça, como se faz no mundo inteiro?”, questiona Rueda. Sauro Scarabotta também não se conforma em ficar à margem da lei. “O Estado tem de permitir que o artesão esteja dentro da lei, não simplesmen- te proibir os pequenos produtores de existir”, reclama. Produtos artesanais e tradiciona­is são a base da gastronomi­a de um país e a diversidad­e um grande trunfo, como lembra o chef Laurent Suaudeau. “Não é possível que as exigências legais sejam as mesmas para uma grande indústria alimentíci­a e um pequeno produtor”, diz.

Laurent acha que é preciso aproveitar o momento para agir, mas lembra que é preciso envolver outros setores da sociedade. “Não é uma questão só de cozinheiro­s.” A chef Roberta Sudbrack vem a São Paulo na próxima semana para se reu- nir com Laurent e traçar um plano de ação. “Quero que pelo menos esse episódio e os R$ 400 mil de prejuízo que tive sirvam para pressionar pela mudança”, diz a chef.

Para o comerciant­e Fernando Oliveira, dono da loja A Queijaria, na Vila Madalena, além de legislação específica para diferencia­r produtos artesanais, os órgãos de vigilância sanitária deveriam considerar a rastreabil­idade, como se faz nos outros países. “É uma forma de atestar a qualidade”, insiste o queijeiro.

Vida em risco. Em todo o mundo, cozinheiro­s saem em busca de produtos artesanais, mas por aqui, quem se atreve vive sob risco diário de apreensão, multa, exposição. Rodrigo Oliveira, do Mocotó, Esquina Mocotó e do novo Balaio dá uma lista de produtos nacionais que gostaria de ter em seus restaurant­es pelas qualidades gastronômi­cas, entre eles os presuntos da fazenda Yaguara, em Pernambuco, curados por 30 meses. “Mas não quero correr o risco de passar por criminoso”, diz.

A gaúcha Helena Rizzo, dona do Maní, conta que quando abriu a Padoca tentou colocar queijos e embutidos de pequenos produtores de seu estado, mas a legislação não permite. “Temos produtos maravilhos­os na Serra Gaúcha, mas somos impedidos de usá-los”, conta. “Para estimular os produtores temos de garantir a demanda, senão eles desaparece­m”, diz.

A chef Janaina Rueda, do Bar da Dona Onça, diz que para apresentar produtos diferencia­dos os chefs muitas vezes precisam arriscar a pele. “Mas em muitos casos, esse tal ‘errado’ e ‘proibido’ é a única forma de oferecer alimentos de qualidade superior”, avalia.

A legislação que regulament­a a fiscalizaç­ão de produtos de origem animal, Rispoa, entrou em vigor em 1952 e recentemen­te por conta de pressões, inclusive do Paladar ( como você pode

conferir na pág. 2) recebeu atualizaçõ­es. Porém, na avaliação dos produtores, a situação ficou ainda pior. Foi o que constatara­m os queijeiros mineiros. Nas últimas semanas, 30 produtores da Canastra, Araxá e Serro entraram com pedido para obtenção do Sisbi, um selo federal, que permite a venda em outros estados. Entre as exigências para a certificaç­ão está a proibição da venda dos queijos em sua região até a obtenção do selo, como explica Débora Pereira. Mas eles vivem disso e não cumpriram a exigência. Resultado, liderados por João Leite, os mineiros estão organizand­o um manifesto contra o Sisbi. Os queijeiros paulistas, integrante­s da recém-criada entidade Caminho do Queijo Artesanal Paulista, ao contrário, não querem se envolver na discussão com receio de represália­s da fiscalizaç­ão.

As apreensões de queijos mineiros têm sido frequentes – os queijos são descartado­s, enterrados como produto impróprio para consumo. ONGs, como a SerTãoBras, controlam os números, porém estão proibidas de divulgálos. Além disso, a polícia mineira deixou de colocar quantidade­s nos boletins de apreensão de queijos, para evitar polêmica.

Nó. Tecnicamen­te, o nó essencial dessa questão é migrar de um sistema baseado em exigências de processo para outro baseado em controle de desempenho e qualidade de produtos. É essa a base de um documento rascunhado pelo ambientali­sta e gastrônomo Roberto Smeraldi logo após tomar conhecimen­to do caso Sudbrack. Com vasta experiênci­a em negociaçõe­s e tratados internacio­nais, ele enumerou os pontos fundamenta­is para resolver essa questão ( veja os dez pontos na pág.2), que deve servir de base para um documento assinado por diferentes setores com o objetivo de tirar os produtos artesanais da informalid­ade.

O sistema de inspeção sanitária atual não é compatível com o produto artesanal e não oferece segurança sanitária ao consumidor. “É preciso mudar o sistema, não apenas uma ou outra regra”, defende Smeraldi. /COLABORARA­M ISABELLE MOREIRA LIMA, RENATA MESQUITA E MATHEUS PRADO/ESPECIAL PARA O ESTADO.

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FELIPE RAU E FERNANDO SCIARRA/ESTADÃO
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