O Estado de S. Paulo

Um dos maiores embaixador­es do País, o 007 da MPB

Mais do que gostar dele, Elis Regina ouvia o Menescal. Uau. Eu nunca tinha visto isso acontecer antes

- João Marcello Bôscoli ESPECIAL PARA O ESTADO

A minha primeira lembrança do Menescal foi em casa com a Elis. Três coisas chamaram atenção: a primeira era o fato do Menesca representa­r o cão, o diabo – a gravadora no caso. A segunda era ele ser parceiro do meu pai, Ronaldo Bôscoli – à época, uma espécie de diabo aos olhos da minha mãe. E a terceira e mais intrigante: Elis realmente gostava dele. Mesmo. Mais do que gostar; ela ouvia o Menescal (?!?). Uau. Nunca tinha visto isso antes.

Sua fala amistosa, o aroma da sua colônia, a força contida e educada em suas colocações, o sol em seu violão, o sotaque carioca e o corte de camisa perfeitos. Percebi também em seus olhos claros, oceano íntimo, haver um pequeno tique, um leve piscar em mono. Diante de tanta calma, mesmo ainda menino, achei impreciso chamar aquele gesto involuntár­io de tique “nervoso”.

Aquele homem era tudo, me- nos nervoso. Exímio mergulhado­r, descomprim­ia as tensões com sorrisos e tiradas sagazes, bem-humoradas. E, com suas centenas de viagens internacio­nais para divulgar a música brasileira, compostas por centenas de horas de espera e atrasos em conexões, o impávido Roberto Menescal é dos nossos maiores embaixador­es, um Instituto Rio Branco tocando violão e contando histórias.

Ele talvez tenha sido a primeira pessoa a me mostrar a beleza e verdade invencívei­s dos bastidores – hoje meu hábitat natural. E também, apenas por ser como é, me ensinou a amar os amigos exatamente como eles são. Amigos têm caracterís­ticas, não defeitos. Amigos são nossa mátria.

Menescal é o meu 007 a serviço da música. Com sua turma de vagabundos geniais, um MI-6 poético-etílico, desafiou as leis da física e do nefasto machismo vigente através de duas proezas: trazer o sol de volta para a música brasileira e tirar a mulher do papel de vilã, traidora ou alpinista social nas temáticas musicais brasileira­s à época.

Bossa Nova é o movimento do sim – acima de tudo para e pela mulher. A favor do ser humano.

Conhecendo-o ali, diante da Elis, vi que tudo era verdade, es- tilo de vida, jeito de ser.

Voltando ao encontro profission­al onde o conheci... trabalhinh­o difícil, convenhamo­s...

Conhecendo Elis como poucos, tendo atravessad­o fases, humores e mares (Menescal tocou com Elis ao redor do mundo), ter coragem de ir até a toca do onça para “aprovar” seu novo disco? Jura?

Haja clonazepam. Preferiria fugir de um urso recém-desperto ou algo similar.

Certa vez, ele me contou ter um sangrament­o nasal esporádico (geralmente antes de receber a Elis e poucos outros artistas em reuniões na gravadora).

Ao procurar um médico ouviu ser melhor não cauterizar a veia, afinal, ela era um “alarme” da sua pressão, da sua tensão – causadas em parte pela Elis, claro.

Por outro lado, trabalho fácil esse do Menescal.

Ir até a casa de uma das melhores cantoras do mundo, ouvir os melhores músicos (Hélio Delmiro/guitarra, Luisão Maia/baixo, Paulo Braga/bateria, Cesar Camargo “o pão” Mariano/teclados e arranjos) e as melhores canções dos melhores compositor­es da época.

Era difícil ficar ruim. Aliás, nunca ficou. Tal qual com Pelé e Garrincha, o Brasil nunca perdeu com Elis e Menescal jogando juntos. E esse placar nunca mudará.

É tempo de despertar.

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