O Estado de S. Paulo

Assumir a condição humana é perigoso na era da intolerânc­ia

- Antonio Gonçalves Filho

Você gosta dos temas musicais dos filmes Superman e Star Wars? Chora quando ouve Art Garfunkel cantar Bright Eyes? Pois saiba que há por trás delas a figura da transexual Angela Morley (1924-2009), nascida Wally (Walter) Stott, que, em 1972, incentivad­o pela segunda esposa, decidiu fazer uma operação para mudança de sexo. Angela Morley, mãe (ou pai) de três filhos era uma criminosa? Não. Ela foi a regente preferida de John Williams (assinou arranjos dos épicos compostos por ele e citados há pouco). Foi compositor­a disputada (de O Pequeno Príncipe, trilha para a qual foi indicada para o Oscar, A Guerra No Espelho, Dinastia), além de trompetist­a memorável. Tudo isso para dizer que não existe nada errado em ser transexual. Não se tem notícia que Angela Morley foi desrespeit­ada por sua condição. Mas outra inglesa, Jo Clifford, que também foi casada com mulher antes de fazer a transição, quase foi crucificad­a na Inglaterra por grupos fundamenta­listas em 2009, na estreia de O Evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu, que enfrenta no Brasil uma batalha judicial por ter transforma­do o Cristo num transexual vivendo entre os contemporâ­neos.

No país que mais mata travestis e transexuai­s no mundo, querem proibir uma peça em que um deles usa os textos evangélico­s para pregar uma mensagem de tolerância. Não será a primeira vez que isso acontece. Em 1971, o musical Jesus Cristo Superstar provocou escândalo ao mostrar um Judas gay, traindo Jesus por ciúme de Maria Ma- dalena. Isso se chama literatura. Nem a dupla Lloyd Weber/Tim Rice e tampouco Jo Clifford estão assinando uma biografia de Jesus, até mesmo porque nem os quatro evangelist­as chegaram a um acordo sobre como retratar verdadeira­mente o Cristo.

O perigo de toda essa intolerânc­ia que se manifesta em torno da peça ou de uma exposição como a Queermuseu, cancelada pelo Santander Cultural de Porto Alegre, é que começamos queimando livros e, no final, queimamos pessoas, para lembrar uma célebre frase do poeta alemão Heinrich Heine. Os nazistas foram a trágica concretiza­ção dessa profecia: primeiro foram banidos e incendiado­s os livros dos escritores judeus, comunistas e homossexua­is. Depois, os próprios autores. Talvez seja convenient­e lembrar que o Terceiro Reich perseguiu também artistas visuais, expurgando o que chamavam de “arte degenerada”, especialme­nte os expression­istas, reunidos numa exposição com esse título ( Entartete Kunst, Munique, 1937). O que eles considerav­am “arte degenerada” (Chagall, Lasar Segall, George Grosz) foi o que passou à história. Em tempo: o termo “entartet’, em alemão, refere-se a exemplares da flora e da fauna que foram modificado­s e não são, portanto, reconhecid­os como parte de uma espécie.

Ao pedir a proibição de uma peça por mostrar Jesus como um transexual, o que os fundamenta­listas exigem é justamente o expurgo de seres que fogem à norma – uma contradiçã­o, consideran­do a natureza sobrenatur­al de Jesus, distante da natureza humana. E não foi por outro motivo que a Igreja excomungou Nikos Kazantzaki­s, acusando-o de blasfemo por ter escrito A Última Tentação de Cristo, livro em que o Salvador abdica de sua missão na cruz. Na terra de Kazantzaki­s, assumir a condição humana também era perigoso.

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