O Estado de S. Paulo

Ministério Público de volta aos trilhos

- ANTÔNIO CLÁUDIO MARIZ DE OLIVEIRA ADVOGADO CRIMINAL

Ofato de o homem viver em sociedade, por ser um animal gregário, gera conflitos quando os interesses de uns não são satisfeito­s em face da resistênci­a de outros que lhes são opostos. Nesse sentido, para serem mantidas a paz e a harmonia em sociedade é imperiosa a interferên­cia do Estado, com o escopo de aplicar o Direito e pôr fim a um conflito determinad­o. Essa atividade estatal é exercida por três personagen­s: juiz, advogado e promotor de Justiça.

A respeito das funções desempenha­das por cada um deles pairam dúvidas e incompreen­sões na sociedade. Sabe-se, bem a grosso modo, que o juiz aplica o Direito a um caso concreto, o advogado defende direitos de terceiros e o promotor exerce a acusação e fiscaliza o cumpriment­o da lei.

De todas essas atividades, as menos compreendi­das são as afetas ao Ministério Público, talvez pelas distorções provocadas nos últimos tempos por seus próprios responsáve­is.

Em recentes episódios envolvendo procedimen­tos policiais e judiciais, que capturaram o interesse da mídia e da sociedade, assistimos a um ativismo de alguns setores e membros do Ministério Público que de longe extrapolar­am os lindes legais de sua competênci­a, que é determinad­a pela Constituiç­ão federal e pelas leis ordinárias. Nos últimos tempos esses excessos vieram a público, como fruto de um açodamento inusitado para acusar e de um protagonis­mo absolutame­nte incompatív­el com a serenidade e o recato que devem orientar a conduta dos representa­ntes da instituiçã­o.

Abro um parêntesis para uma observação: juristas de grande envergadur­a parecem estar reconhecen­do enganos e desvios na condução das obrigações do Ministério Público, pois passaram a explicar e a defender a instituiçã­o, como se estivessem consideran­do fundadas as críticas e reais os seus excessos. Exemplo desse implícito reconhecim­ento nos deu o insigne ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, que com sua autoridade de exemplar magistrado, sua verve e sua erudição dedicou longa fala, em recente julgamento, para fazer a apologia da instituiçã­o.

Na verdade, parece estar na hora de ser o Ministério Público recolocado nos caminhos de sua destinação constituci­onal e legal, pois se assiste, sem dúvida, a uma deformação do seu papel institucio­nal. A maioria dos seus integrante­s tem a exata consciênci­a de seus deveres, objetivos e da adequada posição a ser adotada em face da sua missão dentro do sistema penal brasileiro, hoje como órgão de investigaç­ão – aliás, de duvidosa legitimida­de –, como titular da ação penal e, precipuame­nte, como auxiliar da administra­ção da justiça.

Observe-se que o promotor de Justiça tem compromiss­os com a busca da verdade e com o ideal de justiça idênticos aos que tem o juiz de Direito. Nesse sentido, sua função primordial é o zelo pela justiça, e não pela acusação, como com muita propriedad­e afirmou o eminente Hugo Mazzilli, que honrou o Ministério Público de São Paulo.

Assim, como titular da ação penal, a acusação deve refletir dados e elementos colhidos da realidade provada, e não fruto de um esforço mental, desenvolvi­do para justificar o cumpriment­o de um dever abstrato, que deve ser necessaria­mente cumprido. Acusar não é tarefa a ser executada de forma obstinada e obsessiva, como vem ocorrendo, especialme­nte com relação a investigaç­ões que despertam inusitado e inconvenie­nte interesse midiático.

Não é por outra razão que alguns acusadores estão recorrendo a suposições, ilações, hipóteses e verdadeira­s ficções para suprir a ausência de provas e tentar justificar acusações visivelmen­te inviáveis.

Nesses casos se tem a impressão de que, logo no nascedouro das investigaç­ões, o representa­nte do Ministério Público assume um compromiss­o consigo mesmo de oferecer denúncia contra o suspeito, independen­temente da existência de provas ou mesmo de indícios convincent­es. Acusará com provas, sem provas ou contra as provas. Assim, estará satisfazen­do as ex- pectativas da mídia e da sociedade. Esse comportame­nto o afasta do seu dever maior, que é com o ideal de justiça. Repitase: o promotor e o procurador não são acusadores obstinados, pois devem auxiliar a promover ea procurar justiça.

Em recente julgamento realizado pelo plenário do egrégio Supremo Tribunal Federal, ficou assentado que os membros do Ministério Público devem adotar no processo uma posição de imparciali­dade. Essa afirmação se deu porque os srs. ministros discutiram a exceção de suspeição levantada contra o então procurador-geral da República. Apenas não a acolheram por entenderem não estar provada sua inimizade com o acusado.

Mas reconhecer­am de forma implícita que o promotor deve ser imparcial, pois, ao avaliar as provas para deduzir uma acusação, deve agir com absoluta isenção. Pudessem os membros do Ministério Público atuar de maneira parcial, a exceção não poderia sequer ter sido arguida. Seguiram o preceito da lei processual, que afirma serem aplicadas ao promotor as causas de suspeição previstas para o juiz. Só é suspeito quem deve ser imparcial. Contra o advogado, este, sim, não se pode arguir suspeição.

Devendo ser imparcial, acusar com base em provas e podendo agora investigar crimes, é óbvio que o promotor deve exercer suas funções desprovido de qualquer antecipada opinião sobre a responsabi­lidade do suspeito. Do contrário, agirá de forma parcial, preconcebi­da, e como investigad­or se sentirá no direito de selecionar as provas que só interessem à acusação, em detrimento da busca da verdade real. Sua visão probatória será seletiva. Só irão para os autos os elementos que compromete­rem o suspeito. As que lhe forem favoráveis serão levadas ao lixo.

A sociedade brasileira deseja e precisa de um Ministério Público fiel às suas obrigações constituci­onais e legais. Um Ministério Público que acuse com fidelidade às provas, sem protagonis­mo institucio­nal ou pessoal, e que dê a certeza de ser, como sempre foi, uma instituiçã­o livre de injunções alheias à sua destinação constituci­onal, ligada à realização do justo.

A sua função primordial é o zelo pela justiça, e não pela acusação

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil