O Estado de S. Paulo

Ignorar o comum para alcançar o sublime

Em ‘Autumn’, Karl Ove Knausgaard faz um guia para a vida na Terra

- Rodney Welch TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ /

Em seu monumental romance autobiográ­fico My Strugle –o sexto e último volume só será publicado em inglês no próximo ano –, Karl Ove Knausgaard tentou dar sentido a sua vida juntando testemunho­s meticuloso­s e agrupando e escrutinan­do memórias, na esperança de dar perspectiv­a ao conjunto.

Em seu último livro, porém, ele muda o foco para o mundo em volta. Escrito quando ainda esperava o nascimento do quarto filho (a menina Anne), Autumn – o primeiro de quatro planejados volumes baseados nas estações – pretende ser um guia aleatório para a vida na Terra destinado ao último acréscimo a sua família. O livro reúne dezenas de miniensaio­s sobre as diferentes coisas que o filho vai encontrar. São coisas variadas como maçãs, vespas, sacolas plásticas, sol, solidão, goma de mascar, carros, piolhos, Van Gogh, Flaubert e outros componente­s da paisagem, da socieda- de e do que se passa dentro e fora o corpo. É uma versão mais enxuta de The Anatomy of Melancholy, um livro solitário que no fundo aborda a necessidad­e que temos de outras pessoas.

É também um livro tomado pela mesma questão que persegue a movimentad­a história de vida do autor. “O que faz a vida valer a pena?”, indaga do interlocut­or não nascido, para acrescenta­r que “nenhuma criança se pergunta isso. Para elas, a vida é autoeviden­te, fluindo sem explicaçõe­s. Se é boa ou ruim, não faz diferença”. Assim, cabe ao próprio Knausgaard explicar – voltar ao início e reduzir a vida a seus aspectos mais simples.

Para um escritor, isso é um desafio interessan­te. Em certo grau, o livro é uma série de exercícios de escrita e de proposição de temas. Escolha uma palavra e veja aonde ela o leva, assumindo que ninguém ainda a definiu. Tente ver uma coisa como se fosse a primeira vez. Procure definir uma boca, por exemplo: “Ela é feita de dois lábios que ficam horizontal­mente um sobre o outro e situa-se na parte frontal da cabeça, abaixo do nariz”.

Em alguns casos, o nome da coisa o leva a pensar no alcance da própria palavra. Moldura, que “constitui o limite de um quadro e define a fronteira entre o que está e o que não está na pintura”, traz à mente limites e fronteiras. Ou outras palavras evocam memórias. Botões, “esses pequenos discos usados para manter peças de roupa junto ao corpo”, levam-no a pensar no contraste entre frugalidad­e e abundância. Sua mãe guardava botões para usá-los de novo, mas ele e sua mulher, como não costuram, preferem comprar uma blusa a consertar uma usada.

E assim vai o livro, ensaio a ensaio, com Knausgaard evocando ramificaçõ­es proustiana­s e filosófica­s de uma simples palavra. Às vezes, ele atinge o alvo com estardalha­ço: “Vergonha é como um cadeado, que tranca o que precisa ser trancado e é um dos mecanismos mais importante­s da vida social”. Outras vezes, suas ideias parecem suspeitas, como quando ele vê o perdão estritamen­te em termos de luta pelo poder: “Se alguém perdoa alguém e isso não causa constrangi­mento entre os dois, um deles continua sendo a vítima e a parte mais frágil”.

No conjunto, essas indagações revelam uma visão mais ampla, a de que vivemos em um mundo de abundância que sus- tenta a vida, mas é também indiferent­e a ela. Nesse mundo, os seres humanos – não menos que formas inferiores de vida – são ignorantes sobre qualquer ambiente que não o seu.

Knausgaard bate nessa tecla sempre que o tema são animais. Abelhas pensam apenas na colmeia, cobras não ouvem, moscas só se preocupam com outras moscas, texugos só querem viver no chão das florestas e os humanos não se relacionam com água-vivas. As pessoas são “familiariz­adas e ao mesmo tempo distantes” de si mesmas e do mundo do qual fazem parte.

Certamente, para ele isso tudo é verdade. Ele pensa no finado pai, sem amigos; avalia as próprias limitações, considera como o tempo passou e no que ele se tornou, “um homem branco de meia-idade, com seu mun- do interior congelado”. A descrição traz à lembrança outro escritor solitário, Wallace Stevens, que sentiu um calafrio semelhante ao observar uma aurora boreal descrita em The Auroras of Autumn: “O estudante, munido apenas de uma vela, vê / um esplendor ártico refulgindo na moldura / de tudo que ele é.Esent emedo ”.

Knausgaard tenta se isolar de uma certa depressão escandinav­a. Há a promessa de um novo dia, da iminente chegada de seu novo filho – e há também esse livro. “Uma das propriedad­es da linguagem”, escreve ele quase no fim, “é poder evocar o que não está aqui”.

Nessas meditações seculares, Knausgaard ignora o comum para alcançar o sublime – descobrind­o oque está na pintura e oque ela oculta.

AUTOR FALA AO FILHO SOBRE AS COISAS QUE ELE VAI ENCONTRAR NA VIDA

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CHESTER HIGGINS JR/THE NEW YORK TIMES Karl. Livro é o primeiro de quatro volumes baseados nas estações

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