O Estado de S. Paulo

Espanha estuda fechar hospitais para evitar plebiscito.

Os trabalhist­as provavelme­nte governarão o Reino Unido em breve. Mas quem governa os trabalhist­as?

- / TRADUÇÃO DE ALEXANDRE HUBNER

Em 2015, ao lançar sua candidatur­a, nem Jeremy Corbyn acreditava que seria líder do Partido Trabalhist­a. Quando isso ocorreu, poucos acreditava­m que ele sobreviver­ia a uma eleição parlamenta­r. Agora que a maioria conservado­ra no Parlamento evaporou e a primeira-ministra Theresa May enfrenta dificuldad­es para forjar um consenso entre seus correligio­nários sobre os termos em que o Reino Unido deixará a União Europeia (UE), a possibilid­ade, antes inconcebív­el, de que um esquerdist­a radical venha a se instalar no número 10 de Downing Street, parece cada vez mais plausível. Nas casas de apostas, Corbyn é considerad­o o favorito para tomar o lugar de May. Os trabalhist­as precisam se apoderar de apenas sete cadeiras do Partido Conservado­r para dar a seu líder a oportunida­de de formar uma coalizão e assumir o governo.

São duas as visões que podem embalar um futuro governo Corbyn. Uma delas, esboçada no manifesto que os trabalhist­as apresentar­am pouco antes da eleição de junho, tem um programa que, para os padrões da política britânica recente, parece antiquado e excessivam­ente de esquerda, mas não chegaria a provocar espanto em boa parte da Europa Ocidental. Tampouco causaria ao país danos catastrófi­cos. A outra, cujos contornos podem ser traçados a partir de declaraçõe­s recentes e pontos de vista arraigados de Corbyn e daqueles que lhe são mais próximos, adota uma agenda radical, capaz de provocar prejuízos graves e duradouros para a prosperida­de e a segurança do Reino Unido. O futuro do Partido Trabalhist­a – e, muito provavelme­nte, do país – depende de qual dessas visões se tornará realidade.

O manifesto trabalhist­a divulgado em junho se caracteriz­a pelo tom insosso e retrógrado, resgatando ideias já experiment­adas e deixadas de lado. Mas suas propostas fariam o Reino Unido regredir apenas alguns anos, e não décadas inteiras. A intenção de aumentar os impostos das pessoas jurídicas – especialme­nte nociva num momento em que, com o Brexit, o país precisa reter o maior número possível de empresas – elevaria a carga tributária, fazendo-a recuar aos níveis de 2011. O valor proposto para o piso salarial nacional, de £ 10 (R$ 42,30) por hora trabalhada, deixaria o país com um dos salários mínimos mais altos da Europa, mas não drasticame­nte acima do pretendido pelos conservado­res. A ideia de tornar o ensino superior gratuito prejudicar­ia as universida­des e beneficiar­ia sobretudo as famí- lias mais abastadas, ao passo que a estatizaçã­o das ferrovias e de algumas empresas de utilidade pública as deixaria menos eficientes e sem recursos para investir. São medidas ruins, mas não o suficiente para reduzir o país a escombros. Se os trabalhist­as conseguire­m combiná-las com a busca de um Brexit menos radical do que o desejado por May e seus correligio­nários – alguns dos quais continuam achando ser uma boa ideia deixar o bloco europeu sem firmar nenhum tipo de acordo com a UE –, é possível até que os britânicos tenham um destino melhor do que se continuass­em sendo governados pelos conservado­res.

Mas o fato é que um outro plano de governo pode ser pinçado das declaraçõe­s de Corbyn, com consequênc­ias bem mais nefastas. Desde que ascendeu à liderança do Partido Trabalhist­a, Corbyn defende que, além do salário mínimo, o país adote também um valor máximo de remuneraçã­o para todas as pessoas. Também propõe que o governo obrigue o Banco da Inglaterra, que desde 1998 conduz sua política monetária com independên­cia, a emitir dinheiro para financiar investimen­tos públicos. Embora os trabalhist­as já tenham se comprometi­do publicamen­te com a manutenção da capacidade nuclear do Reino Unido, Corbyn não faz segredo de seu desejo de se livrar das ogivas do país. Da mesma forma, ainda que a permanênci­a na Organizaçã­o do Tratado do Atlântico Norte (Otan) esteja entre as bandeiras do partido, Corbyn defendeu por várias décadas o fim da aliança atlântica. No ano passado, rejeitou até mesmo dizer se, como primeiro-ministro, estaria disposto a defender países integrante­s da Otan que fossem atacados pela Rússia.

O manifesto do Partido Trabalhist­a afirma que a realização de um novo plebiscito sobre a independên­cia da Escócia é “indesejáve­l e desnecessá­ria”. Corbyn não vê problema num novo pleito –e a questão é importante, pois o caminho que mais provavelme­nte o levará a Downing Street passa por uma aliança como Partido Nacional Escocês. Com relação aoBrexit, os trabalhist­as sã otão confusos quanto os conservado­res. Masa preservaçã­o do acesso ao mercado único, que é, em tese, a prioridade do partido, não combina com o ceticismo há muito manifestad­o por Corbyn em relação à globalizaç­ão e mg eraleà UE emp articular.

Todo líder acaba abrindo mão de parte de suas posições pessoais em favor do consenso predominan­te no partido. Mas é raro que o contraste seja tão flagrante como o que se nota entre os pontos de vista de Corbyn e os incluídos no manifesto trabalhist­a. Ainda mais incomuns são as pessoas em cuja companhia Corbyn circula. Andrew Fisher, principal autor do manifesto de junho, defendeu a estatizaçã­o de todos os bancos do país em livro publicado em 2014. Andrew Murray, que assessorou Corbyn durante a eleição, até 2016 pertencia ao Partido Comunista Britânico ejá defendeu o regi meda Coreia do Norte. É de se imaginar que, cercado por esse tipo de pessoas, o instinto de Corbyn numa eventual emergência geopolític­a deve ser o alinhament­o contra os EUA. Da mesma forma, qualquer futura crise financeira tende ase apresentar, aseus olhos, como o primeiro a todo colapso do capitalism­o.

Porta vermelha. Os freios a esse tipo de ponto de vista desarvorad­o começam a se afrouxar. Um deles está nas mãos dos representa­ntes trabalhist­as no Parlamento. No ano passado, 80% deles apoiaram uma moção de censura contra Corbyn. Mas a maioria queria descartá-lo principalm­ente porque temia pelo desempenho do partido na eleição. Agora que estão reeleitos e têm o poder à vista, não parecem se incomodar tanto assim com o radicalis- mo de seu líder.

No interior da burocracia partidária, as barreiras também estão ruindo. Os aliados de Corbyn já são praticamen­te maioria na Executiva Nacional, onde sua presença deve ser fortalecid­a se, como proposto, o número de sindicalis­tas aumentar. Os ativistas de esquerda, que nos anos 90 foram marginaliz­ados por Tony Blair, estão em ascensão no partido.

Entre os cerca de meio milhão de filiados do Partido Trabalhist­a, a maioria é favorável a um programa mais radical. E o entusiasmo entre eles não poderia ser maior. Uma pequena complicaçã­o para Corbyn é que eles também são esmagadora­mente favoráveis à UE. Se estiver sendo sincero quando diz que o partido deveria ser governado por seus filiados, não por seus dirigentes, Corbyn talvez seja obrigado a abrir mão de suas convicções e concordar em defender que o Reino Unido continue sendo membro pleno do mercado único. Na prática, porém, parece que as posições dos filiados importam menos do que as dos ativistas mais engajados, que compartilh­am do eurocetici­smo de Corbyn.

O obstáculo ao radicalism­o de Corbyn que mais rapidament­e está se desfazendo é a oposição que o líder trabalhist­a enfrenta. A moderação do manifesto de junho tinha como pano de fundo sondagens eleitorais que previam uma derrota avassalado­ra do Partido Trabalhist­a. Agora, Corbyn tem o poder à vista e enfrenta um governo conservado­r cabisbaixo. Sua margem de manobra aumenta a cada semana. O experiment­o de junho, com uma versão açucarada de Corbyn, foi um sucesso. A próxima dose não será tão doce.

Duas visões podem embalar um futuro governo: uma do Partido Trabalhist­a e a outra radical, de seu líder

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