O Estado de S. Paulo

Gerações se unem contra separação da Catalunha

Unionistas agrupam de jovens liberais ‘antifronte­iras’ a idosos saudosos de Franco

- Andrei Netto ENVIADO ESPECIAL / BARCELONA

A três dias do plebiscito, milhares de estudantes foram às ruas de Barcelona a favor da independên­cia da Catalunha. Mas grande parte da população é contra a mudança – de jovens progressis­tas a idosos saudosos de Franco, informa Andrei Netto.

Dezenas de milhares de estudantes catalães foram às ruas de Barcelona ontem, em uma nova demonstraç­ão de força em favor do plebiscito de independên­cia da Catalunha, previsto para este domingo. Tida como “ilegal” pelo Tribunal Constituci­onal e pelo governo de Mariano Rajoy, a votação segue mobilizand­o a opinião pública na segunda maior cidade da Espanha. Mas, em meio aos protestos e às demonstraç­ões de nacionalis­mo, uma enorme parte da população segue quase inaudível: os unionistas, catalães que não desejam a secessão da Espanha.

A três dias do plebiscito que pode servir como uma etapa decisiva na fratura entre Barcelona e Madri, a reportagem do Estado foi ao encontro dessa fatia da opinião pública que não se mobiliza, nem vai às ruas, mas é considerad­a a maioria dos catalães. Uma pesquisa de opinião de julho, realizada pela administra­ção regional da Catalunha, indicou que 41% desejam a separação e 49,4% não querem saber de independên- cia. Esses eleitores estão dispersos entre os 7,5 milhões de habitantes da região e são em grande parte espanhóis ou descendent­es nascidos em outras partes do país. Muitos afirmam simpatizar com causas independen­tistas, como o fim da monarquia e a adoção da república, mas não concordam com a criação de uma fronteira. Há desde jovens progressis­tas apegados à ideia de um mundo sem barreiras até senhores que sentem saudade da repressão imposta por Madri durante a ditadura de Francisco Franco.

Em meio à manifestaç­ão estudantil de ontem, realizada na Praça da Espanha, o jovem Guillermo Santos, de 21 anos, destoava da paisagem por não portar a bandeira amarela, vermelha e azul da Catalunha, mas uma boina que lembra a de Che Guevara, coerente com alguém que se define como “anarco-comunista”. “Não creio que uma pátria ou uma bandeira faça homens livres. E também não acredito em fronteiras”, disse o jovem catalão, que se define como “cidadão do mundo”.

Protestand­o entre os manifestan­tes que defendiam o plebiscito, Guillermo disse ter ido à rua ontem para defender o direito de expressão do povo catalão – mesmo que não concorde com a causa. “Vim em apoio à democracia e à liberdade de votar. O governo da Espa- nha, de Mariano Rajoy, ou a coroa espanhola também não me agradam nada. Creio que as pessoas vão às ruas pedir a independên­cia por acreditar nisso, mas em parte também por rejeição ao governo de Madri, a Rajoy e à coroa.”

Para os unionistas, o atrito entre autoridade­s de Barcelona e de Madri é explicado por razões históricas, como a abolição do idioma catalão durante a ditadura de Franco, mas também por fatores conjuntura­is. Muitos citam como combustíve­is do independen­tismo a crise econômica grave, quando o desemprego chegou a 25% da população ativa, a adoção de medidas impopulare­s como o confisco de casas de espanhóis endividado­s – ao mesmo tempo em que o sistema financeiro recebeu bilhões em socorro –, a pouca autonomia da administra­ção regional e a transferên­cia de impostos de Barcelona a Madri. Somam-se ainda as muitas denúncias de corrupção envolvendo Rajoy e o Partido Popular (PP), e a monarquia, vista como cara e anacrônica.

Professora de escola pública do governo regional, María Carmen S., de 47 anos, pede para não ser identifica­da porque tem “um pouco” de receio de represália­s no trabalho. Moradora de Carrer de Santa Ágata, uma das ruas do bairro boêmio e intelectua­l de Gracia, a funcionári­a pública diz compreende­r as causas dos catalães que lutam pela secessão, mas ela é contra.

“Sou nascida na Catalunha, com família da Andaluzia. Sinto-me dividida em termos de identidade, mas não sou independen­tista. O mundo para mim é único e não deveriam existir fronteiras. Não quero uma fronteira com a Espanha”, disse. No bairro de Gracia, tremulam mais bandeiras independen­tistas nas janelas. Além das bandeiras, os separatist­as têm ostentado um símbolo inusitado em defesa da causa, o

personagem Piu Piu. Desde que o governo espanhol enviou 5 mil policiais a Barcelona em dois navios de cruzeiros, um deles com os desenhos dos personagen­s do Looney Tunes, o Piu Piu tornou-se o símbolo dos separatist­as, que ridiculari­zaram Madri.

Segundo María Carmen, o radicalism­o do confronto entre autoridade­s de Barcelona e Madri, que se reflete em falta de diálogo, nas 14 prisões políticas, no confisco de milhões de cédulas eleitorais e no fechamento de seções de voto não representa o verdadeiro estado de espírito da população. “Tirando alguns independen­tistas catalães muito radicais, em geral, as pessoas são muito abertas. Estão lutando por um ideal, por seu sentimento, mas não são um povo violento ou nacionalis­ta. Há um grupúsculo muito radical, mas isso existe em toda parte, até mesmo no Brasil.”

Reduto. Situado a cinco estações de metrô de Gracia, o Nou Barris tem o perfil social oposto. Em lugar de classe média e alta, de artistas e intelectua­is de esquerda, o bairro reúne assalariad­os, operários, aposentado­s e grande parte dos trabalhado­res espanhóis que migraram para a Catalunha nos anos 60 e 70. Nas ruas, é muito mais fácil encontrar quem prefira falar castelhano do que catalão e, nas janelas, há mais bandeiras espanholas do que separatist­as. Na pesquisa de opinião encomendad­a pelo governo regional, apenas 29,1% dos habitantes do bairro defenderam a secessão.

Manolo Martín, de 75 anos, aposentado, é um desses que rejeitam a independên­cia. “Creio que esse plebiscito não vai nem ocorrer. Sou contra a independên­cia e acho que devemos nos sentir espanhóis. Com todas as letras: não pode haver plebiscito, porque não é legal”, disse. Nascido em Sevilha, na Andaluzia, sul da Espanha, Martín foi viver na Catalunha com 12 anos, “como um imigrante”. Hoje, 63 anos depois, continua contrário à separação.

Questionad­o sobre por que os unionistas não se mobilizam para votar ou ir às ruas, manifestar sua opinião, o aposentado justifica: “Nós não precisamos nos mobilizar porque o governo já se mobiliza pelo ‘não’”. Seu medo, conta, é a desintegra­ção do país. “A Espanha é uma colcha de retalhos. Se cada uma das 17 comunidade­s que constituem o país, como País Basco, Galícia, Valência, Andaluzia, quiserem a independên­cia, a Espanha desaparece.”

Na Catalunha, uma região conhecida por seu progressis­mo político, ser unionista é associado a ser militante da direita, eleitor do PP ou “franquista” – ou seja, defensor da ditadura de Franco, que governou o país com mão de ferro entre 1939 e 1975. Na maior parte das vezes, esse não é o caso. Mas às vezes, é.

Esse é o caso de Martín Ramos, ex-operário de 81 anos. Indignado com o movimento de secessão, ele define seus militantes como “fanáticos que não se importam com nada”. “Vivi e trabalhei 50 anos, toda a minha vida aqui na Catalunha. Então, posso dizer: os líderes independen­tistas são todos ladrões e querem roubar mais”, disse, acrescenta­ndo: “A independên­cia que vá à m…”.

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JOSEP LAGO/AFP Provocação. Personagem Piu Piu tornou-se símbolo separatist­a desde que Madri mandou policiais em um navio com desenhos animados no casco
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Opositor. Manolo Martín rejeita votação por considerá-la ilegal

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