O Estado de S. Paulo

Olhar sobre a Rússia

País revela domínio capitalist­a e nostalgia autoritári­a.

- Flávio Ricardo Vassoler ✱ ✱ É DOUTOR EM LETRAS PELA USP, COM ESTÁGIO DOUTORAL NA NORTH WESTERN UNIVERSITY (EUA)

I.Fé e amor em tempos de cólera Irkutsk, capital da Sibéria Oriental.

De cabelos loiros que beiram o amarelo de Van Gogh e maçãs do rosto levemente salientes, a guia siberiana Elena Kopytina me revela, diante da Catedral da Epifania, que os bulbos sinuosos e coloridos das igrejas ortodoxas representa­m a chama das velas.

– Um único bulbo mimetiza a onipresenç­a de Deus; três, a Santíssima Trindade; quatro, os evangelist­as Mateus, Marcos, Lucas e João. (Com uma piscadela, Elena me sussurra que a heresia de um quinto bulbo representa­ria o evangelho apócrifo de Judas Iscariotes.)

– Nas igrejas ortodoxas – prossegue Elena –, o púlpito fica a leste, onde nasce o Sol, e a entrada fica a oeste. Assim, os fiéis caminham rumo à pregação e ao amanhecer de uma nova vida. (Com uma nova piscadela, Elena me sussurra que a coruja da descrença sempre levanta voo ao entardecer.)

Perto dali, Elena me mostra a estátua de um casal sumamente apaixonado.

– A túnica de mangas bem longas, a lhe cobrir as mãos, denota que o homem apaixonado era um nobre. (Com uma terceira piscadela, Elena me sussurra que, se o nobre enamorado tivesse que arregaçar as mangas para trabalhar como um servo, ele logo deixaria de suspirar para sentir o que é o amor em tempos de cólera.)

II.Até mais ver

No Mercado Central de Novosibirs­k, capital da Sibéria Ocidental, uma vendedora idosa, com os cabelos bem brancos sob um lenço vermelho, me oferece o cherbet, uma espécie de alfajorf eito comf rutas secas moídas e sementes de girassol, nozes, mele gergelim.

Enquanto conversamo­s, os olhos da senhora Olga Titova vão ficando marejados. Quando lhe pergunto se está tudo bem, ela saca do bolso do avental um pequeno porta-retrato dourado com uma foto de um jovem fardado – um rapaz de olhos estreitos e lábios finos, testa ampla e nariz grande e vigoroso. – Oleg, meu marido, se parece com você.

Ela aperta minhas mãos antes de dizer que o soldado Oleg Tchernov foi um dos 27 milhões de soviéticos ceifados pela Segunda Guerra Mundial.

– Vá ao Museu Ferroviári­o de Novosibirs­k. Lá você vai ver o vagão-hospital onde meu Oleg morreu – ele não suportou a amputação de uma perna sem anestesia. Bozhe mói! (Meu Deus!)

Ao se despedir, a senhora Titova afaga meu rosto e, em seguida, me dá um cherbet.

–É o doce favorito do Oleg–e levai ficar contente como presente. Dos vidania !( Até mais ver !)

III.Stalin está te vendo!

Entro no vagão-hospital que fica no Museu Ferroviári­o de Novosibirs­k. Quem caminha pelo vagão silencioso, entre as macas e os instrument­os médicos perfilados, precisa se esforçar para imaginar que as cirurgias traumática­s aqui realizadas implicavam a vida e a morte imediatas dos soldados mutilados após o inferno do fronte. Com sorte, doses minguadas de vodca anestesiav­am as amputações – no mais, salve-se quem puder!

E eis que os médicos, enfermeira­s e moribundos do hospital transpassa­do por agonia e sangue eram vigiados por retratos do líder soviético Josef Stalin, mentor de julgamento­s políticos que resultaram em milhões de execuções e expurgos para campos de trabalho forçado espraiados pelos confins da Sibéria.

Sem ter como tranquiliz­ar os soldados trêmulos antes das amputações com serras, facas e machados, as enfermeira­s só faziam apelar ao terror que Stalin inspirava para (tentar) aplacar os gritos e uivos:

– Aguente firme, vamos! Porte-se bem, soldado: Stalin está vendo você!

IV.Ninguém governa sem culpa?

Na fronteira entre a Ásia e a Europa, desponta a cidade de Yekaterinb­urgo. Com gestos vivazes, a guia me explica que a Catedral do Sangue Derramado foi erigida, após o fim da União Soviética, “sobre as ruínas da casa do comerciant­e Ipatiev, onde, em julho de 1918, os algozes bolcheviqu­es fuzilaram o czar Nicolau II e sua família. Assim, a Igreja batizou esta catedral com o sangue inocente dos Romanov. Ademais, Nicolau e seu filho Alexei foram canonizado­s após o fim do ateísmo soviético”.

– Natália, posso lhe fazer umas perguntas? Com o atraso e a fome que devastavam a Rússia antes da Revolução de 1917, será que os Romanov eram tão inocentes quanto reza a hagiografi­a histórica pós-soviética?

(Natália faz um Pelo Sinal da Santa Cruz, à maneira ortodoxa, para iniciar o meu processo de excomunhão.)

– De fato, Natália, o fuzilament­o dos Romanov foi uma ação atroz capitanead­a por Lenin. Mas, ora, quando é que transforma­ções históricas radicais não ceifaram vidas humanas? A república moderna não foi disseminad­a com a guilhotina dos franceses? A abolição da escravatur­a não se viu profundame­nte municiada pela guerra civil nos Estados Unidos? Ora, ainda que discordemo­s visceralme­nte de Lenin, é preciso dizer que há pressupost­os históricos para sua medida draconiana: se as tropas monarquist­as resgatasse­m os Romanov em meio à guerra civil que as contrapunh­a aos bolcheviqu­es, os czaristas teriam uma bandeira e tanto para impulsiona­r a reação à Revolução de Outubro, não? É por isso, Natália, que o revolucion­ário francês Saint-Just sentenciou que “ninguém governa sem culpa”.

(Natália beija um ícone com a imagem do Cristo Ortodoxo junto à lapela de sua blusa para prosseguir com o meu processo de excomunhão.)

– Uma última pergunta: será que, a exemplo do que ocorreu com São Nicolau II, a Igreja Ortodoxa Russa canonizará Vladimir Putin, quando o novo czar deixar o trono da presidênci­a após a morte?

(Natália me fulmina com os mesmos olhos que fuzilaram os Romanov.)

V.Bode expiatório

Morei em Moscou entre 2008 e 2009 para fazer um curso de língua russa na RUDN (Universida­de Russa da Amizade dos Povos). De volta à cidade, Moscou me parece bem mais capitalist­a. Há oito anos, já se discutia a remoção da múmia de Lenin do mausoléu na Praça Vermelha, mas ainda não havia rumores sobre a construção de um centro empresaria­l a meros dois quilômetro­s do Kremlin, com arranha-céus que destoam radicalmen­te do estilo dos prédios aristocrát­icos na área histórica da capital. (Será possível imaginar Moscou como uma sucursal eslava de Chicago?) Há oito anos, não havia estátuas equestres dos czares Alexandre III e São Nicolau II cerrando fileiras com bustos de Marx e Lenin.

E eis que, nas imediações do agourento prédio do KGB, ao lado de um busto de São Alexei Romanov, filho de Nicolau II, vejo uma roda ao redor de um velho de barba bíblica. Os fiéis parecem hipnotizad­os pela pregação eslavófila a clamar pela “Grande Rússia comandada por Putin! Sim, agora voltamos a ter orgulho da nossa pátria! E em verdade lhes digo que a URSS caiu porque seus líderes não eram russos autênticos: Lenin era judeu; Khruschov, ucraniano; e que dizer do georgiano Stalin?”

Entorpecid­o pela pregação eslavófila, não consigo deixar de levantar a mão para pedir a palavra. Contrariad­o, o velho me olha com desconfian­ça e apruma o ouvido com a mão direita em concha.

– Senhor pregador, o que o senhor disse sobre os líderes soviéticos forasteiro­s (e potencialm­ente traidores) me deixou pasmo e me lembro de algo... Uma vez, em Berlim, eu ouvi um bêbado nazista latir que Hitler só não conseguira exterminar todos os judeus porque ele próprio era... judeu.

(O velho me fulmina com olhos de inquisidor.) – A algumas quadras daqui, um mendigo gritava que, na época da União Soviética, todos tinham dinheiro, mas não havia nada nas lojas; agora, há de tudo nas lojas, mas ninguém tem dinheiro...

(Os fiéis me fulminam com olhos de quem enfim encontrou um bode expiatório.)

Na última parte da Trilogia Transiberi­ana, o olhar cultural para a Rússia contemporâ­nea revela domínio capitalist­a e nostalgia autoritári­a

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 ?? RUSSIA LARS RUECKER/GETTY IMAGES ?? Religião. Catedral ortodoxa em Moscou, capital da Rússia; bulbos sinuosos e coloridos que adornam o cume das torres e abóbadas desses templos representa­m a chama das velas
RUSSIA LARS RUECKER/GETTY IMAGES Religião. Catedral ortodoxa em Moscou, capital da Rússia; bulbos sinuosos e coloridos que adornam o cume das torres e abóbadas desses templos representa­m a chama das velas
 ?? ALEXANDER NEMENOV/REUTERS ?? Czar. Vladimir Putin, presidente da Rússia, traz nostalgia autoritári­a
ALEXANDER NEMENOV/REUTERS Czar. Vladimir Putin, presidente da Rússia, traz nostalgia autoritári­a
 ?? MUSEU DE ARTE RUSSO ?? Canonizado. São Nicolau II, o último czar
MUSEU DE ARTE RUSSO Canonizado. São Nicolau II, o último czar
 ?? DAVID MDZINARISH­VILI/REUTERS ?? Stalin. Zaur Tsurtsumia, sósia do ditador
DAVID MDZINARISH­VILI/REUTERS Stalin. Zaur Tsurtsumia, sósia do ditador

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