Olhar sobre a Rússia
País revela domínio capitalista e nostalgia autoritária.
I.Fé e amor em tempos de cólera Irkutsk, capital da Sibéria Oriental.
De cabelos loiros que beiram o amarelo de Van Gogh e maçãs do rosto levemente salientes, a guia siberiana Elena Kopytina me revela, diante da Catedral da Epifania, que os bulbos sinuosos e coloridos das igrejas ortodoxas representam a chama das velas.
– Um único bulbo mimetiza a onipresença de Deus; três, a Santíssima Trindade; quatro, os evangelistas Mateus, Marcos, Lucas e João. (Com uma piscadela, Elena me sussurra que a heresia de um quinto bulbo representaria o evangelho apócrifo de Judas Iscariotes.)
– Nas igrejas ortodoxas – prossegue Elena –, o púlpito fica a leste, onde nasce o Sol, e a entrada fica a oeste. Assim, os fiéis caminham rumo à pregação e ao amanhecer de uma nova vida. (Com uma nova piscadela, Elena me sussurra que a coruja da descrença sempre levanta voo ao entardecer.)
Perto dali, Elena me mostra a estátua de um casal sumamente apaixonado.
– A túnica de mangas bem longas, a lhe cobrir as mãos, denota que o homem apaixonado era um nobre. (Com uma terceira piscadela, Elena me sussurra que, se o nobre enamorado tivesse que arregaçar as mangas para trabalhar como um servo, ele logo deixaria de suspirar para sentir o que é o amor em tempos de cólera.)
II.Até mais ver
No Mercado Central de Novosibirsk, capital da Sibéria Ocidental, uma vendedora idosa, com os cabelos bem brancos sob um lenço vermelho, me oferece o cherbet, uma espécie de alfajorf eito comf rutas secas moídas e sementes de girassol, nozes, mele gergelim.
Enquanto conversamos, os olhos da senhora Olga Titova vão ficando marejados. Quando lhe pergunto se está tudo bem, ela saca do bolso do avental um pequeno porta-retrato dourado com uma foto de um jovem fardado – um rapaz de olhos estreitos e lábios finos, testa ampla e nariz grande e vigoroso. – Oleg, meu marido, se parece com você.
Ela aperta minhas mãos antes de dizer que o soldado Oleg Tchernov foi um dos 27 milhões de soviéticos ceifados pela Segunda Guerra Mundial.
– Vá ao Museu Ferroviário de Novosibirsk. Lá você vai ver o vagão-hospital onde meu Oleg morreu – ele não suportou a amputação de uma perna sem anestesia. Bozhe mói! (Meu Deus!)
Ao se despedir, a senhora Titova afaga meu rosto e, em seguida, me dá um cherbet.
–É o doce favorito do Oleg–e levai ficar contente como presente. Dos vidania !( Até mais ver !)
III.Stalin está te vendo!
Entro no vagão-hospital que fica no Museu Ferroviário de Novosibirsk. Quem caminha pelo vagão silencioso, entre as macas e os instrumentos médicos perfilados, precisa se esforçar para imaginar que as cirurgias traumáticas aqui realizadas implicavam a vida e a morte imediatas dos soldados mutilados após o inferno do fronte. Com sorte, doses minguadas de vodca anestesiavam as amputações – no mais, salve-se quem puder!
E eis que os médicos, enfermeiras e moribundos do hospital transpassado por agonia e sangue eram vigiados por retratos do líder soviético Josef Stalin, mentor de julgamentos políticos que resultaram em milhões de execuções e expurgos para campos de trabalho forçado espraiados pelos confins da Sibéria.
Sem ter como tranquilizar os soldados trêmulos antes das amputações com serras, facas e machados, as enfermeiras só faziam apelar ao terror que Stalin inspirava para (tentar) aplacar os gritos e uivos:
– Aguente firme, vamos! Porte-se bem, soldado: Stalin está vendo você!
IV.Ninguém governa sem culpa?
Na fronteira entre a Ásia e a Europa, desponta a cidade de Yekaterinburgo. Com gestos vivazes, a guia me explica que a Catedral do Sangue Derramado foi erigida, após o fim da União Soviética, “sobre as ruínas da casa do comerciante Ipatiev, onde, em julho de 1918, os algozes bolcheviques fuzilaram o czar Nicolau II e sua família. Assim, a Igreja batizou esta catedral com o sangue inocente dos Romanov. Ademais, Nicolau e seu filho Alexei foram canonizados após o fim do ateísmo soviético”.
– Natália, posso lhe fazer umas perguntas? Com o atraso e a fome que devastavam a Rússia antes da Revolução de 1917, será que os Romanov eram tão inocentes quanto reza a hagiografia histórica pós-soviética?
(Natália faz um Pelo Sinal da Santa Cruz, à maneira ortodoxa, para iniciar o meu processo de excomunhão.)
– De fato, Natália, o fuzilamento dos Romanov foi uma ação atroz capitaneada por Lenin. Mas, ora, quando é que transformações históricas radicais não ceifaram vidas humanas? A república moderna não foi disseminada com a guilhotina dos franceses? A abolição da escravatura não se viu profundamente municiada pela guerra civil nos Estados Unidos? Ora, ainda que discordemos visceralmente de Lenin, é preciso dizer que há pressupostos históricos para sua medida draconiana: se as tropas monarquistas resgatassem os Romanov em meio à guerra civil que as contrapunha aos bolcheviques, os czaristas teriam uma bandeira e tanto para impulsionar a reação à Revolução de Outubro, não? É por isso, Natália, que o revolucionário francês Saint-Just sentenciou que “ninguém governa sem culpa”.
(Natália beija um ícone com a imagem do Cristo Ortodoxo junto à lapela de sua blusa para prosseguir com o meu processo de excomunhão.)
– Uma última pergunta: será que, a exemplo do que ocorreu com São Nicolau II, a Igreja Ortodoxa Russa canonizará Vladimir Putin, quando o novo czar deixar o trono da presidência após a morte?
(Natália me fulmina com os mesmos olhos que fuzilaram os Romanov.)
V.Bode expiatório
Morei em Moscou entre 2008 e 2009 para fazer um curso de língua russa na RUDN (Universidade Russa da Amizade dos Povos). De volta à cidade, Moscou me parece bem mais capitalista. Há oito anos, já se discutia a remoção da múmia de Lenin do mausoléu na Praça Vermelha, mas ainda não havia rumores sobre a construção de um centro empresarial a meros dois quilômetros do Kremlin, com arranha-céus que destoam radicalmente do estilo dos prédios aristocráticos na área histórica da capital. (Será possível imaginar Moscou como uma sucursal eslava de Chicago?) Há oito anos, não havia estátuas equestres dos czares Alexandre III e São Nicolau II cerrando fileiras com bustos de Marx e Lenin.
E eis que, nas imediações do agourento prédio do KGB, ao lado de um busto de São Alexei Romanov, filho de Nicolau II, vejo uma roda ao redor de um velho de barba bíblica. Os fiéis parecem hipnotizados pela pregação eslavófila a clamar pela “Grande Rússia comandada por Putin! Sim, agora voltamos a ter orgulho da nossa pátria! E em verdade lhes digo que a URSS caiu porque seus líderes não eram russos autênticos: Lenin era judeu; Khruschov, ucraniano; e que dizer do georgiano Stalin?”
Entorpecido pela pregação eslavófila, não consigo deixar de levantar a mão para pedir a palavra. Contrariado, o velho me olha com desconfiança e apruma o ouvido com a mão direita em concha.
– Senhor pregador, o que o senhor disse sobre os líderes soviéticos forasteiros (e potencialmente traidores) me deixou pasmo e me lembro de algo... Uma vez, em Berlim, eu ouvi um bêbado nazista latir que Hitler só não conseguira exterminar todos os judeus porque ele próprio era... judeu.
(O velho me fulmina com olhos de inquisidor.) – A algumas quadras daqui, um mendigo gritava que, na época da União Soviética, todos tinham dinheiro, mas não havia nada nas lojas; agora, há de tudo nas lojas, mas ninguém tem dinheiro...
(Os fiéis me fulminam com olhos de quem enfim encontrou um bode expiatório.)
Na última parte da Trilogia Transiberiana, o olhar cultural para a Rússia contemporânea revela domínio capitalista e nostalgia autoritária