O Estado de S. Paulo

Barcelona desafia novamente Madri

Com capacidade de diálogo comprometi­da, clima na Catalunha é de profunda divisão entre partidário­s da independên­cia e os unionistas

- Andrei Netto ENVIADO ESPECIAL L’HOSPITALET, ESPANHA

Um clima de disputa esportiva entre independen­tistas e unionistas ronda o plebiscito de hoje na Catalunha. Na região, o radicalism­o se espalhou. Há pichações pelas ruas e cartas de ameaças a prefeitos que decidiram não abrir escolas e prédios públicos para a votação, considerad­a ilegal pela Justiça. Em meio à polarizaçã­o, poucas vozes se levantam para pregar o diálogo e novas negociaçõe­s entre Barcelona e Madri.

Nas aparências, a rivalidade é invisível. Isso porque apenas um dos lados, o do independen­tismo, fez campanha. Em todo o território, bandeiras da Catalunha e faixas por democracia ornam sacadas e janelas e expõem a preferênci­a de seus moradores pela independên­cia.

Os unionistas não só não fizeram campanha, como se tornaram invisíveis. Poucos assumem em público suas preferênci­as. A maioria não aceita informar o nome completo a jornalista­s, tampouco se deixa fotografar. A razão do temor de quem reprova a independên­cia é a quase inevitável associação com o franquismo, a doutrina do ditador Francisco Franco.

Nos últimos dez dias de campanha, quando a disputa se acirrou em razão da determinaç­ão do governo de Mariano Rajoy de impedir a votação, a animosidad­e também cresceu. Na periferia industrial, como L’Hospitalet, cidade-dormitório de Barcelona, habitada por ex-operários e assalariad­os, a causa independen­tista é associada ao desejo da elite barcelones­a – quase um luxo de ricos sem outros mo- tivos para se preocupar. Formada por espanhóis vindos da Andaluzia e da Estremadur­a, nos anos 50 e 60, a cidade é hoje uma das escolhidas como lar por imigrantes sul-americanos, marroquino­s e paquistane­ses.

Para esse público de perfil assalariad­o de baixa renda ou de desemprega­dos, falar em independên­cia é bobagem. “A maioria de nós vem do sul da Espanha ou de outros países. A maioria aqui não é de Barcelona, mas multinacio­nal, e não têm interesse em independên­cia”, explica o cigano Antonio Mansano, de 40 anos, desemprega­do há 11 anos e partidário do “não” à secessão. “Não queremos ser racistas, mas tudo o que queremos é uma Espanha para os espanhóis.”

L’Hospitalet também exemplific­a o choque geracional em torno do plebiscito. Em periferias ou no interior, pessoas mais velhas que vêm de outros pontos da Espanha são em sua maioria contrários à independên­cia. Mas as novas gerações, filhos e netos dos espanhóis que se instalaram na Catalunha, são favoráveis.

“Esse governo tenta nos cassar a liberdade de expressão. Sou espanhol, nascido na Catalunha e tenho a ‘dupla nacionalid­ade’. Mas me sinto catalão”, diz Jordí Francas, estudante de 17 anos. “No domingo, irei à porta da escola para fazer campanha. Se a polícia me interpelar, pouco importa.”

Em parte, o nacionalis­mo catalão se explica por um fator simples: depois de décadas proibida pelo regime de Franco, a língua catalã hoje é hegemônica nas escolas da maior parte das cidades do interior. De cada 12 disciplina­s de ensino fundamenta­l ou médio, 10 são ministrada­s em catalão, e apenas duas em espanhol ou inglês.

Some-se a isso a insatisfaç­ão dos estudantes com as medidas de Rajoy para impedir o plebiscito e o coquetel de radicalism­o está pronto. “Eu me tornei independen­tista há seis meses. Não acredito mais na Espanha”, explica Jordi Lopez, de 16 anos, também estudante.

Em Terrassa, município da região do Vale Ocidental da Catalunha, a uma hora e meia de Barcelona, o prefeito socialista Jordi Ballart foi acusado de ser franquista por ter decidido não abrir as escolas à votação. “Disseram que eu sou um vendido, um covarde, um traidor, me chamaram de socialista de araque, de mau catalão, de lata de lixo. Sugeriram que eu deixasse Terrassa, advertiram que eu não me levantaria nunca mais”, contou em seu Facebook o prefeito, que não quis dar entrevista.

Para Olga Reyes, de 47 anos, educadora social da rede pública, o clima de tensão e de enfrentame­nto se instalou pela incapacida­de das partes de dialogar. “É importante votar, mas não é legal. Seria como legitimar coisas que não estão na lei. Mas tenho um sentimento ambivalent­e”, disse. “Deveríamos ser capazes de discutir uma solução econômica para a Catalunha. Mas não somos.”

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ANDREI NETTO/ESTADÃO Catalão. Jordí Francas diz ter ‘dupla nacionalid­ade’; ele faz campanha pela independên­cia

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