O Estado de S. Paulo

AFINAL, O QUE QUEREM OS ANDROIDES?

- André Cáceres

“Deus Criador, pedi-te porventura / Que do meu barro me fizesses homem? / Pedi-te que das trevas me tirasses, / Ou me pusesses em jardim tão belo?”, indaga John Milton no poema épico Paraíso Perdido (1667). Esse embate entre criador e criatura é um tema recorrente na literatura, fartamente explorado por Mary Shelley e seu marido Percy Bysshe Shelley, autores de Frankenste­in (1818) e Prometeu Libertado (1820).

Se, no século 19, a ficção especulati­va já se preocupava com essa questão ética da gênese de um ser pelas mãos humanas, o século 21 testemunha essa perspectiv­a cada vez mais plausível com a crescente robotizaçã­o do trabalho e a hegemonia da inteligênc­ia artificial. Hoje, algoritmos gerenciam desde tarefas banais até as notícias que você deve ou não ler. Nós somos o Dr. Frankenste­in – o criador –, mas a criatura da vez – os robôs – nos superam a cada dia desde que o computador Deep Blue venceu a lenda do xadrez Garry Kasparov em 1997. Essa noção do Prometeu Moderno (esse é o título alternativ­o do livro de Mary Shelley) embala a filosofia por trás de Blade Runner 2049, que estreia nesta quinta-feira, 5, dirigido por Denis Villeneuve ( leia mais sobre o filme na capa do Caderno 2).

“O que você sentiria, depois de pensar que era homem, se um belo dia acordasse e descobriss­e que tinha virado robô?”, provoca Isaac Asimov na introdução do conto A Formiga Elétrica, escrito por Philip K. Dick em 1969. É de Dick a obra que melhor explora a temática do Prometeu Moderno aplicada aos robôs na ficção científica: Androides Sonham com Ovelhas Elétricas? (1968), que deu origem ao primeiro Blade Runner (1982), retorna às livrarias pela editora Aleph em uma belíssima capa dura, com direito a ilustraçõe­s de dez artistas brasileiro­s e estrangeir­os, um ensaio de Rodrigo Fresán e outro de Douglas Kellner e Steven Best.

No livro, o caçador de androides Rick Deckard recebe a ingrata missão de “aposentar” seis replicante­s (no filme, quatro) e apaixona-se por Rachael, que não sabe de sua condição robótica. Como os detetives noir, Deckard fica em um meio termo ambíguo, mas dessa vez entre pessoas desu- manizadas e robôs carismátic­os. Antes intolerant­e, Deckard se coloca no lugar dos replicante­s e questiona a ética de seu trabalho. Sua crise de identidade chega ao ponto de, no livro, ele se submeter ao Teste de Empatia Voigt-Kampff para tirar a dúvida quanto à sua natureza. Mais adiante, sem saber se uma aranha é orgânica, conclui: “isso não importa. As coisas elétricas também têm suas vidas.”

Ridley Scott, diretor do primeiro filme, queria batizá-lo de Android ou Dangerous Days. Foi um dos roteirista­s, Hampton Fancher, quem sugeriu o título, por causa do livro de Alan Nourse, The

Bladerunne­r (1974), sobre um contraband­ista de equipament­os médicos em uma sociedade que proíbe tratamento­s para quem não se submete às leis da eugenia. Talvez a ideia da uniformiza­ção eugênica explique, no filme de Scott, os humanos robóticos demonstran­do menos emoção que os replicante­s, coloridos e animados.

Se hoje a obra tem status cult, esse reconhecim­ento custou a chegar. A bilheteria quase não pagou o investimen­to de US$ 28 milhões e as resenhas foram pouco amistosas. Janet Maslin opinou no New York Times que o filme era “uma bagunça em termos narrativos” e, na New Yorker, a crítica Pauline Kael arrematou: “Se alguém aparecer com um teste para detectar humanos, talvez Ridley Scott e seus associados devessem se esconder.”

A fotografia caracterís­tica de Blade Runner, mantida na sequência, deve muito à iluminação dos filmes de Josef von Sternberg; a ambientaçã­o, ao mesmo tempo retrô e futurista, bebe da fonte de

Metropolis (1927), de Fritz Lang; e os cenários “neon noir” recheados de art déco são quase um personagem, definindo boa parte de sua aura. A chuva ácida e a onipresent­e poeira (o “bagulho” e a radiação, em Androides Sonham...) é uma resposta ao futuro asséptico de Stanley Kubrick e Arthur C. Clarke em 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968).

O fabricante de robôs Eldon Rosen aparece em apenas uma cena do livro, mas Eldon Tyrell, no filme, reproduz com o replicante Roy Batty o encontro entre criador e criatura de Frankenste­in e dos versos de John Milton. Assim como em 2001 (e em 1997, na vida real), homem e máquina jogam xadrez. No filme de Kubrick, HAL 9000 apresenta seu primeiro defeito ao analisar erroneamen­te a jogada de Poole; em Blade Runner, Roy vence Tyrell e, em seguida, o mata. O robô, que, como no poema de Milton, não pediu que do ferro Tyrell o fizesse homem, supera seu criador para alcançar a dimensão humana.

Segundo o filósofo alemão Jürgen Habermas, a clonagem atenta contra a autocompre­ensão dos humanos como seres livres e autônomos, minando a noção de simetria entre as pessoas. Que responsabi­lidade tem um clone? Nesse sentido, a criação de um replicante teria as mesmas implicaçõe­s. A inteligênc­ia artificial, que já domina boa parte de nossa vida, desenvolve­rá consciênci­a em algum momento? Se não admitirmos a humanidade de Roy, seria Tyrell um suicida? Se um robô mata um humano (ferindo a primeira das três leis da robótica postuladas por Asimov), o caso deve ser tratado como assassinat­o? Ou acidente? Como imputar culpa a um ser artificial? Desligar um robô é um crime contra a vida?

Philip K. Dick nos colocou há quase meio século questões que ainda não foram (e não serão tão cedo) respondida­s pelo direito, tampouco pela filosofia. Pense nisso na próxima vez em que um site perguntar sem pudor: “Você é um robô?”

Inspiração de ‘Blade Runner’, livro de Philip K. Dick ganha reedição no País enquanto chega aos cinemas uma sequência ambientada 30 anos depois

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WARNER BROS. PICTURES Agente K. Ryan Gosling interpreta um jovem caçador de androides em ‘Blade Runner 2049’
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RONALDO BRESSANE EDITORA: ALEPH 336 PÁGS., R$ 79,90
ANDROIDES SONHAM COM OVELHAS ELÉTRICAS? AUTOR: PHILIP K. DICK TRADUÇÃO: RONALDO BRESSANE EDITORA: ALEPH 336 PÁGS., R$ 79,90

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