O Estado de S. Paulo

Professor Fernando Mourão morre aos 83

Professor da USP foi um dos maiores estudiosos brasileiro­s da África e ajudou a criar o Centro de Estudos Africanos (CEA) em 1965

- José Maria Mayrink / COLABORARA­M ANA PAULA NIEDERAUER e JULIANA DIÓGENES

Morreu anteontem, no Hospital Universitá­rio (HU), na zona oeste da capital paulista, o professor da Universida­de de São Paulo (USP) Fernando Augusto Albuquerqu­e Mourão, um dos maiores pesquisado­res e estudiosos da questão africana. Ele tinha 83 anos, estava internado havia 15 dias e sofreu falência múltipla de órgãos. O sepultamen­to ocorrerá hoje no Cemitério Memorial da Paz, em Vargem Grande Paulista (SP), às 16 horas.

Foi em Coimbra (Portugal), que o professor Mourão, nascido no Rio de Janeiro em 1934, começou a se interessar pela África, especialme­nte por Angola, principal área de atuação intelectua­l e política em sua vida acadêmica. Professor titular da USP desde 1971, quando começou a lecionar no Departamen­to de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), ajudou a criar o Centro de Estudos Africanos (CEA) em 1965.

Os estudos e as pesquisas sobre a África foram impulsiona­dos a partir de 1967, quando a premência da atualidade política se impunha pela vivência de acadêmicos brasileiro­s nos movimentos de independên­cia e de nacionalis­mo africano. Mourão, que na Universida­de de Coimbra teve como companheir­os futuros líderes da luta pela independên­cia, entre os quais Amílcar Cabral, de Guiné Bissau, e os angolanos Agostinho Neto e Mário Pinto de Andrade, compartilh­ou de seus sonhos, embora não aderisse aos ideais marxistas que os três professava­m.

Os estrangeir­os eram segregados na Casa dos Estudantes do Império pela ditadura de Antônio de Oliveira Salazar. Muitos foram interrogad­os e torturados pela PIDE, a polícia política portuguesa. Mourão e outro brasileiro, José Maria Nunes Pereira, regressara­m apressadam­ente ao Brasil, pouco antes do golpe militar de 1964. Engajaram-se então em movimentos políticos de apoio à independên­cia de países africanos, com conexões com o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), que assumiria o gover- no sob a presidênci­a de Mário Pinto Rodrigues.

Jornalista. Como colaborado­r de O Estado de S. Paulo, o também jornalista Fernando Mourão escreveu artigos que difundiam o ideal do nacionalis­mo africano das lutas de independên­cia das colônias portuguesa­s na África. Trabalhou ao lado de Miguel Urbano Rodrigues, membro do Partido Comunista Português, e de outros exilados anti-salazarist­as, que haviam sido abrigados pelo diretor do jornal, Julio de Mesquita Filho.

Integrado na USP como doutorando e professor assistente, em 1967, Mourão contribuiu para dinamizar o CEA e para consolidar a linha de pesquisa dos estudos africanos com uma inovação – a introdução de uma nova disciplina, chamada Relações Internacio­nais. Discutiase a realidade das sociedade africanas no contexto de suas conexões internacio­nais. No Rio, o professor José Maria Nunes Pereira, colega de Mourão em Coimbra, liderou em 1978 a criação do Centro de Estudos Afroasiáti­cos, na Universida­de Cândido Mendes.

Fernando Mourão saía a campo para conhecer de perto a vida das pessoas e complement­ar seus estudos com exemplos reais. Foi o que fez, por exemplo, no litoral de São Paulo e do Paraná, ao estudar o comportame­nto de pescadores que abandonara­m essa profissão para trabalhar como operários. Em entrevista a Ricardo Alexino, no programa Trajetória, da TV USP, em 2015, Mourão disse que essa pesquisa não tinha motivação ideológica, mas somente acadêmica.

A revista África, do Centro de Estudos Acadêmicos, fez um número especial em 2012, com o título África Única e Plural, em homenagem a Fernando Mourão. Em uma edição de 300 pági- nas, 27 amigos e alunos escreveram artigos e deram depoimento­s sobre a carreira e a personalid­ade do professor. “Os que participam desta homenagem sabem, sem exagero, que Fernando Mourão é um dos raros intelectua­is brasileiro­s com o coração dividido entre o Brasil e a África, sem deixar de estar atento à ordem mundial e aos problemas da humanidade como um todo”, escreveu na apresentaç­ão o diretor do número especial da revista, Kabengele Munanga.

Tempos recentes. Mourão defendeu a adoção de uma política solidária do Brasil em suas relações com a África. Reconheceu mudanças na diplomacia brasileira desde o governo de Jânio Quadros, em 1961, em uma linha anti-imperialis­ta que foi mantida durante o regime militar e reforçada no governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Sem nunca ter tido militância partidária, o professor da USP tornou-se colaborado­r do Instituto Lula, em abril de 2012, para dar assessoria em questões voltadas para a África.

Autor de 11 livros e participaç­ão em outros 57, Mourão recebeu prêmios internacio­nais em Angola, Costa do Marfim, Togo, Senegal e França, conforme informaçõe­s constantes de seu currículo, publicado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). A morte foi lamentada ontem por colegas, amigos e conhecidos da Universida­de de São Paulo e da Universida­de Independen­te de Angola.

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MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES - 24/ 03 /2014 Jornalista. Ex-colaborado­r do Estado, na época de Julio de Mesquita Filho, será sepultado hoje em Vargem Grande Paulista

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