O Estado de S. Paulo

Ainda é tempo

- SERGIO FAUSTO

Aeleição de outubro na Argentina será um teste decisivo para o governo de Mauricio Macri. Está em jogo quase metade das cadeiras da Câmara e um terço do Senado. As pesquisas indicam que Cambiemos, a coalizão de partidos que apoia Macri, vencerá nos principais colégios eleitorais do país. Provavelme­nte a vitória não lhe dará maioria, mas o presidente ampliará em muito sua bancada nas duas Casas do Congresso. Com seu principal adversário abatido, o kirchneris­mo, e sem uma oposição alternativ­a de peso, Macri evitará o destino de todos os presidente­s derrotados nas eleições de meio de mandato (tornar-se um “pato manco”) e se projetará como favorito às eleições presidenci­ais de 2019. Trata-se de um fato inédito: pela primeira vez na Argentina, desde o surgimento do peronismo, um presidente não peronista chegará ao fim de seu mandato. E mais, com chances de se reeleger.

A provável vitória de Cambiemos não se explica pelo desempenho da economia. Em 2016, primeiro ano do mandato do atual presidente, o PIB argentino reduziu-se e a inflação aumentou, por força dos ajustes tarifários e da desvaloriz­ação cambial que Macri foi obrigado a fazer. Só agora o cresciment­o econômico começa a despontar. A popularida­de de Macri manteve-se elevada porque ele conseguiu convencer a maioria dos argentinos de que a culpa cabia a Cristina Kirchner.

O cientista político Juan Germano, em exposição recente na Fundação Fernando Henrique Cardoso, sustentou a tese de que está em curso na Argentina uma mudança estrutural das preferênci­as políticas e das identifica­ções partidária­s do eleitorado. Dividido internamen­te e diante de eleitores que, em sua maioria, nasceram depois da morte de seu líder icônico, Juan Domingo Perón, o peronismo declina e em seu lugar uma força política de centro começa a ganhar corpo: Macri e Cambiemos.

Germano reconhece que a consolidaç­ão dessa nova força política dominante não são favas contadas. Já a polarizaçã­o peronismo versus antiperoni­smo, que marcou a história po- lítica argentina desde os anos 40 do século passado, parece mesmo página virada. Macri escapa a essa dicotomia, assim como a governador­a da província de Buenos Aires, Maria Eugênia Vidal, uma política de primeiro mandato com índices de popularida­de ao redor de 70%. Se a sustentaçã­o de uma força política depende da disponibil­idade de sucessores à altura, Cambiemos, ao que tudo indica, está bem servido por muitos anos.

Diante desse quadro, salta aos olhos o contraste com a situação brasileira. Aqui o centro político está desarrumad­o, num quadro de alta fragmentaç­ão partidária, sem uma candidatur­a à Presidênci­a que prevaleça naturalmen­te sobre as demais alternativ­as. O chamado “mercado”, a julgar pelos pre- ços dos ativos, minimiza o problema. Aposta que a melhora da economia pavimentar­á o caminho para a vitória de um candidato de centro em 2018. Além disso, confia que a agenda de reformas, previdenci­ária à frente, se imporá inevitavel­mente no próximo período presidenci­al.

O contraste com a Argentina ajuda a ver por que a reconstruç­ão do centro político no Brasil é um problema mais complexo do que faz crer a leitura economicis­ta do “mercado”. A diferença mais visível reside no fato de que a crise econômica, política e moral que atingiu o kirchneris­mo nem sequer respingou nas forças políticas aglutinada­s em torno de Macri. Aqui a crise que pôs fim aos governos do PT abalou também o centro político, atingido igualmente pela Lava Jato. Com a melhora da economia, os danos político-morais podem ser mitigados, mas não deixarão de ser profundos e duradouros.

Outra diferença diz respeito ao tempo transcorri­do na reconstruç­ão do centro político na Argentina, tempo de que o centro político brasileiro não dispõe até as eleições de outubro de 2018. Cambiemos é a decantação de um processo que teve início em 2005 com a fundação do Compromiss­o para el Cambio (depois renomeado Propuesta Republican­a, PRO, o partido de Macri) e se desdobrou na eleição e reeleição do ex-presidente do Boca Juniors para à prefeitura da cidade de Buenos Aires em 2007 e 2011. Um ano antes das eleições presidenci­ais de dezembro de 2015, não restava dúvida sobre quem carregaria as bandeiras de uma política renovada e pós-ideológica.

No Brasil, a um ano das eleições, há muito mais interrogaç­ões do que certezas no centro do espectro político, seja em relação a nomes, seja em relação às ideias-força que deverão diferencia­r uma candidatur­a e conectá-la com os sentimento­s majoritári­os do eleitorado. Jogará o centro político a carta da condução segura e previsível da economia ou da renovação do establishm­ent político, a da conciliaçã­o ou da polarizaçã­o política, a da polarizaçã­o com a direita ou com a esquerda? Claro que qualquer candidato, para ser competitiv­o, deve jogar com mais de uma carta, mas as mensagens principais não podem ser embaralhad­as a ponto de confundire­m o eleitor.

Ainda é tempo, porém, de reconstrui­r o centro político para as eleições. Macri não era o favorito um ano antes das eleições, e sim Sergio Massa, candidato do peronismo dissidente. A costura da aliança que o levou à Casa Rosada foi obra de ousadia e sabedoria política do então prefeito de Buenos Aires, da deputada Elisa Carrió, símbolo da intransigê­ncia contra a imoralidad­e pública, e do senador Ernesto Sanz, líder da velha União Cívica Radical, que deu a Macri a capilarida­de territoria­l que seu partido não tinha.

A melhora da economia pode contribuir, mas a inteligênc­ia política e o desprendim­ento pessoal das lideranças são o que poderá oferecer à sociedade melhores escolhas para o próximo mandato presidenci­al. Não se trata de criar o candidato dos sonhos, mas de evitar o pesadelo de uma escolha de Sofia entre uma direita truculenta e uma esquerda populista.

Na Argentina o centro político se consolida. E no Brasil, para onde vamos?

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