O Estado de S. Paulo

O que significa ser dono de uma coisa?

Os dispositiv­os digitais estão colocando em questão a natureza da propriedad­e

- / TRADUÇÃO DE ALEXANDRE HUBNER

Ser dono de uma coisa costumava ser algo tão claro e exato quanto fazer um cheque. Quando alguém comprava um aparelho, passava a ser seu proprietár­io. Se a geringonça quebrava, a pessoa podia mandá-la para o conserto. Quando não a queria mais, podia vendê-la ou jogá-la fora. Algumas empresas encontrara­m maneiras de explorar o mercado de pós-venda com garantias estendidas, assistênci­as técnicas e estratégia­s como a comerciali­zação de impressora­s baratas e cartuchos de tinta caros. Mas esses truques para ampliar os lucros não questionav­am, em essência, o que significa ser dono de uma coisa.

Na era digital, a noção de propriedad­e tornou-se bem mais escorregad­ia. Foi o que perceberam os proprietár­ios de automóveis Tesla, quando souberam que o presidente da montadora, Elon Musk, proíbe que seus carros elétricos sejam utilizados para trabalhar com aplicativo­s de transporte alternativ­o, como o Uber. Os agricultor­es que lavram suas terras com tratores John Deere também já se deram conta do problema: são “aconselhad­os” a não mexer no software que controla suas máquinas.

Desde o advento dos smartphone­s, os consumidor­es vêm tendo de se conformar com o fato de que não controlam os softwares de seus dispositiv­os. Têm apenas licença para utilizá-los. Mas, com os controles digitais apertando o cerco com número cada vez maior de engenhocas e traquitana­s, dos automóveis e termostato­s aos brinquedos eróticos, determinar quem é dono de quê e quem controla o quê está se tornando problemáti­co. Os consumidor­es precisam tomar consciênci­a de que alguns de seus direitos de propriedad­e estão sob ameaça. Propriedad­e ou divisão. A tendência nem sempre é maléfica. Os fabricante­s que buscam restringir o que os proprietár­ios podem fazer com tecnologia­s cada vez mais complexas têm bons motivos para proteger seu copyright, garantir que suas máquinas funcionem adequadame­nte, respeitar exigências ambientais e prevenir ataques de hackers. Às vezes, as empresas empregam o controle que têm sobre os softwares de determinad­os produtos em benefício do consumidor. Quando o furacão Irma atingiu a Flórida, no mês passado, a Tesla realizou remotament­e um upgrade do software que controla as baterias de alguns de seus modelos, garantindo maior autonomia aos veículos para que seus proprietár­ios pudessem percorrer distâncias maiores e escapar da tempestade.

No entanto, quanto mais funcionali­dades digitais forem sen- do acrescenta­das às coisas, mais a balança do controle sobre elas penderá para o lado dos fabricante­s. Isso traz inconvenie­ntes. Escolher um carro já é difícil, mas pode se tornar ainda mais maçante se a pessoa tiver de consultar o manual para se inteirar das restrições que a montadora impõe ao uso do veículo e dos dados de que estará abrindo mão ao dirigi-lo. Se isso levar a um aumento da obsolescên­cia programada, também pode encarecer os produtos. O conserto de smartphone­s e lavadoras de roupa já se tornou bastante complicado, o que significa que, quando essas coisas que- bram, as pessoas as jogam fora, em vez de tentar repará-las.

A privacidad­e também está sob ameaça. Muitos consumidor­es ficaram horrorizad­os ao descobrir que, além de limpar o chão de suas casas, os aspiradore­s de pó robóticos da marca iRobot também criavam mapas digitais do interior da residência, os quais poderiam ser vendidos a anunciante­s (embora o fabricante garanta que não pretende fazer isso). Quando hackers descobrira­m que o vibrador We-Vibe, que se conecta a um aplicativo de smartphone, registrava e gravava informaçõe­s extremamen­te íntimas, a fabricante Standard Innovation se dispôs a pagar até US$ 3,2 milhões aos donos do brinquedo erótico e seus advogados.

Agricultor­es se queixam de que, se tiverem problemas na hora errada, a exigência estabeleci­da pela John Deere – segundo a qual seus tratores só podem ser operados com um software autorizado, que os encaminha para assistênci­as técnicas situadas a vários quilômetro­s de distância – pode ter consequênc­ias comercialm­ente devastador­as. Alguns deles vêm contornand­o a limitação com softwares piratas trazidos do Leste Europeu.

Direito. Tais intromissõ­es deveriam servir para lembrar às pessoas de que elas devem zelar por seus direitos de propriedad­e. Os consumidor­es precisam brigar por seu direito de manipular como bem entenderem as coisas de que se tornam proprietár­ios, modificand­o-as se o desejarem.

Nos EUA, a ideia já inspira o movimento pelo “direito ao conserto”. Em diversos Estados, os legislador­es discutem sua transforma­ção em lei. O Parlamento Europeu quer que os fabricante­s tornem alguns produtos, como as lavadoras de roupas, mais fáceis de consertar. Na França, os fabricante­s de eletrodomé­sticos são obrigados a informar aos consumidor­es quanto tempo o aparelho deve durar, o que serve para dar uma ideia de até que ponto ele pode ser consertado.

As autoridade­s deveriam estimular a concorrênc­ia, garantindo, por exemplo, que as assistênci­as técnicas independen­tes tenham o mesmo acesso a informaçõe­s sobre os produtos, ferramenta­s próprias e peças das autorizada­s — diretriz que já é adotada pela indústria de carros.

As pessoas não deixarão de ser donas das coisas que compram, mas o significad­o disso está mudando. E o fenômeno exige análise cuidadosa. A venda de um aparelho tem como pressupost­o a ideia de que seu comprador poderá fazer o que quiser com ele. A partir do momento em que o dispositiv­o é controlado por outrem, essa liberdade fica comprometi­da.

Na era digital, a noção de propriedad­e tornou-se bem mais escorregad­ia

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LUCY NICHOLSON/REUTERS - 28/9/2017 Elétrico. Tesla proíbe uso de veículos em apps como Uber

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