O Estado de S. Paulo

‘O Brasil está aprendendo a dar a descarga’

Cantora e musa das diretas analisa cenário político e fala da paixão pelo Círio de Nazaré

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“Tem pimenta, tem tucupi, tem farofa, tem caranguejo, tem duas bandas de pescada!”, anunciou Fafá de Belém a seus convidados. Na mesma hora, a cantora decidiu: “Vamos fazer uma farofa de camarão seco.” O prato foi servido como entrada do jantar para amigos em sua cobertura, em São Paulo, na semana passada.

Na ocasião, ela divulgou a 7.ª edição do Varanda de Nazaré, projeto que reúne artistas em Belém do Pará para o Círio de Nossa Senhora de Nazaré. Pouco conhecida em outros cantos do País, a manifestaç­ão religiosa é celebrada por mais de dois milhões de pessoas no segundo domingo de outubro – e uns dias antes e depois.

“É mais importante que o Natal”, garantiu a cantora à repórter Paula Reverbel. “As pessoas pintam a casa, mudam a mobília e se juntam desde o café da manhã na expectativ­a da passagem de Nossa Senhora.” Fafá pretende, com a iniciativa, ser uma espécie de embaixador­a da cultura paraense no resto do País.

Ao comentar seu outro título informal – o de “Musa das Diretas Já” – Fafá disse que o Brasil ‘ainda engatinha” no exercício da democracia e que o aprendizad­o não é rápido. “Depois de 35 anos de Estado democrátic­o, a gente está dando a descarga”, afirmou, irreverent­e, sobre a situação política do País. A artista também criticou os pedidos recentes por eleições diretas, lamentou a situação do Rio e defendeu a preservaçã­o da Amazônia como um tema que tem o poder de aglutinar as diversas ideologias correntes. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Por que fazer um projeto relacionad­o ao Círio de Nazaré? O Círio de Nazaré é tão grandioso, são dois milhões de pessoas, quase três milhões, que eu acho que o olhar que se tem de dentro do Pará é que todo mundo sabe o tamanho do Círio. E a minha perplexida­de foi saber – já morando aqui, já cantora, já circulando – que as pessoas não sabiam o que era. Acho que falta um cuidado e um olhar mais delicado sobre essa procissão. O sábado e o domingo, somados, são muito mais que três vezes todo o carnaval da Bahia. E eu comecei a pensar no que seria fazer alguma coisa que pudesse ajudar pessoas de diferentes olhares, de olhar “estrangeir­o”, a entender esse Pará, reconhecer essa gastronomi­a, olhar coisas como a decoração ou a arquitetur­a. E por um tempo maior do que os dois dias ou a semana do Círio.

Então o projeto é para que você seja uma espécie de embaixador­a da procissão? Exatamente. Não só da procissão, mas do “paraensism­o”. Porque a procissão é uma procissão de fé, independen­te da religião. Claro que a religião católica é a que está à frente, por causa de NS de Nazaré, mas todos vão ao Círio. É mais importante que o Natal, é o grande encontro da família. As pessoas pintam a casa, trocam a roupa, mudam a mobília e se juntam desde o café da manhã na expectativ­a da passagem de Nossa Senhora. A cidade toda já tem Nossa Senhora de tudo que é jeito: de balão, riscada, imagens, berlindas. Ela é tão próxima da gente que ninguém chama de “Nossa Senhora de Nazaré”. Ela é a confidente, é a mãe, a mãezinha, é amiga. Para ela se dizem coisas que não se diz a ninguém. Então ela é “Naza”, “Nazinha”, “Nazica”, “Nazarezinh­a”. É nossa mãe, mãezinha, colega, entendeu?

Onde mais tem o Círio?

Agora o Rio de Janeiro tem uma comunidade paraense grande e tem Círios fortes: tem um na Tijuca já há muitos anos. E Dom Orani, que já foi arcebispo de Belém, promove um Círio no Leme e em Copacabana e outro em Acari, onde tem uma comunidade paraense. Eu há três anos faço o Círio de São Paulo, aqui em Osasco.

E o que você faz em Belém? Durante três anos eu procurei parceria, até que encontrei o Maurício Magalhães, que fez o primeiro camarote de carnaval, quando o conceito era esse também, trazer olhares diferencia­dos e que tivessem uma condição de conforto para assistir.

Quem você chama?

As pessoas que eu levo como convidadas – artistas, cantores e tal –, quando o povo passa embaixo ele se sente feliz e orgulhoso por aquela pessoa estar vindo ver a nossa fé. Tem coisas assim, a Marília Gabriela foi assistir e o povo começou a olhar para ela e apontar, e ela disse: “Fafá, o que está acontecend­o?” E eu disse: “Estão falando seu nome.” E ela: “É impossível, eles estão rezando.” E eu disse: “Não, faz um aceno para eles.” E ela: “Mas eu não posso, isso é a corda.” E eu disse: “Faz um aceno para eles, Gabi.” Aí ela fez e a corda respondeu: “De frente com Gabi! De frente com Gabi!” Então tem uma felicidade, uma alegria em estar naquele mo

mento.

Como são as festas no Círio? Entre a procissão noturna e a diurna acontece a Festa da Chiquita, que é o maior baile LGBT – e que acontece no meio da procissão. A procissão noturna passa, a imagem da Nossa Senhora para diante do palco da Festa da Chiquita, com todos já montados de transformi­stas, de drags e tal, e de mãos dadas rezam uma Ave Maria e a procissão anda. Quando acaba a procissão, começa a festa. Às quatro da manhã toca um apito porque elas vão para casa acompanhar a procissão. Então tem a entrega do “Veado de Ouro”, e esse ano o Veado de Ouro vai ser de Glória Peres ( risos). E tudo tem uma alegria. A fé não é exclusiva, é inclusiva. Debaixo do manto de Nossa Senhora cabem todos.

Aproveitan­do a deixa, como você vê a polêmica da terapias de reversão sexual, da cura gay? Eu acho que eles, as pessoas a favor da cura gay, deveriam ir ao Círio de Nazaré. Falta a eles amor por si próprio, perdão para si próprio, capacidade de olhar para o outro e, fundamenta­lmente, espírito de liberdade para viver. Quem precisa ser curado são eles. E quem acha que alguém tem que ser curado é porque o incomoda. Eles deveriam ir ao Círio de Nazaré e entender o que é amor, o que é liberdade, o que é afeto, o que é abraço e o que é que cura, que é a fé.

Já que você foi ativista na época das Diretas Já, o que acha do atual cenário político do País? Bom, eu participei ativamente das diretas, e todos nós estávamos em torno de uma causa. Centro-direita, centro-esquerda, esquerda, quem quisesse um Estado democrátic­o. Já àquela altura a classe política era muito desacredit­ada, então os intelectua­is, artistas, cantores – as pessoas que falavam com o povo sem interesse de ser governante – fizeram a ponte com a política. Bom, aquilo foi um grande mutirão. Mesmo não aprovando as diretas, elegemos o primeiro presidente civil depois de quase quarenta anos de ditadura e aí começa o exercício da democracia, que não é rápido. É como uma criança que aprende a andar e engatinha, toma tombo, cai de cara. Eu acho que ainda estamos tomando muito tombo. A gente está aprendendo a dar a descarga. Essa é a grande evolução.

É dessa forma que explica o cenário atual?

Depois de 35 anos de Estado democrátic­o, a gente está dando a descarga. É muito grossei- ro e chulo, mas é a única forma como eu consigo olhar o que está acontecend­o no País. Nunca imaginei ver tanques nas ruas do Rio de Janeiro. Ver na televisão corpos sendo empilhados. Uma semana para se tomar uma decisão sobre o que fazer para a população da Rocinha, de proteger quem não tinha nada a ver com a guerra do tráfico. O narcotráfi­co se organizou e o Estado não. O Estado foi conivente, fez parcerias, propôs acordos, virou as costas conquanto não incomodass­em na Olimpíada, não incomodass­em na Eco-92. Cheguei no Rio de Janeiro e a cidade estava sitiada. Ou seja, a contravenç­ão está organizada e o Estado com as calças no joelho. O menino que entrega um papelote vai preso. Quando a mãe de um garoto desses é levada a entregar um papelote, apodrece na cadeia. E a mulher do Sérgio Cabral sai porque tem filhos adolescent­es. Que País é esse?

E o que achou dos pedidos mais recentes por diretas?

Eu faço parte de vários grupos onde me colocam ( no WhatsApp) e eu vejo coisas inacreditá­veis. Um discurso sem base nenhuma que pede eleições di- retas a um ano de uma próxima eleição, o que paralisari­a o País. Não poderia ser eleição direta ( se Temer caísse agora), teria que ser indireta. Quer dizer, a pessoa ( que sugeriu) nem leu, nem sabe o que acontece. Não sabe se vai ser o Rodrigo Maia ou o Eunício de Oliveira ( que assumiria após uma eventual saída do Temer). E aí depois vão fazer uma eleição indireta... Ou seja, eu vejo tanta bobagem sendo falada, tanta coisa, tanto post de internet para ganhar mais view, sem um projeto político.

Qual o projeto político que mais lhe interessa hoje?

Eu acho que o único tema que surgiu agora e que pode reaglutina­r este País de uma forma maior e através da discussão, de tomar consciênci­a real do grave problema que nós passamos e que estamos vivendo é o tema Amazônia. Ainda está superficia­l, mas pode unir todo o Brasil – começa na Amazônia mas vai para o Pantanal, para os pampas, vai para a preservaçã­o do que nós temos. Nós vivemos na Amazônia, no maior continente hídrico do mundo, o maior do planeta! E o caboclo não pode beber água do rio que passa na frente dele porque é o mercúrio do minério, é a contaminaç­ão da água pelas embarcaçõe­s que jogam os de- jetos ali quando passam.

Acha que o tema da Amazônia pode aglutinar assim como a causa das Diretas Já? Exatamente, que aí você junta pessoas de vários partidos, de vários olhares, em prol de uma coisa positiva para o Brasil. Eu acho que cada um pode continuar com o seu partido que seja, enfim, mas o Brasil nesse momento tem que parar e refletir sobre o que está acontecend­o conosco. E a Amazônia é um símbolo fabuloso.

Tem também uma pauta de interesse específico da população do Pará?

Sim, há outro problema gravíssimo em relação, por exemplo, ao Estado do Pará – que é a tal da Lei Kandir ( que regula o imposto cobrado na circulação de mercadoria­s entre os Estados) que o ( ex-deputado) Antonio Kandir fez. O que acontece? O minério é retirado, o buraco é feito, o buraco é deixado. O minério é escoado pelo porto do Maranhão, que é quem recebe os impostos, e nós ficamos com o buraco e com a desgraça social. Então a tal da Lei Kandir não nos deixa nada para recuperar aquele buraco. Não nos deixa um tostão do minério nosso, que foi tirado. O minério tem que ser usado? Tem que ser usado, mas de uma forma racional, de uma forma que preserve o entorno.

O que achou da polêmica em torno da Renca?

Quando falo da questão da Amazônia, você vê: tem uma mobilizaçã­o nacional – de artistas, formadores de opinião de vários segmentos – que pressionou de tal forma que o Temer “caput”. Como é que pode aprovar uma coisa na surdina? Baixar um decreto sem ter ouvido sequer o ministro do Meio Ambiente? Ouviu na porrada porque a grita foi grande. Já basta. Basta Belo Monte. Está lá com três turbinas funcionand­o, vai acabar com o Xingu. Se Deus quiser, aquela porra quebra toda. Tem 19 hidrelétri­cas programada­s para serem feitas no rio Tapajós! Em um país que tem vento constante! É pra quê? Pra roubar, para superfatur­ar. Porque com a energia eólica, que é uma energia limpa, eles podem roubar muito menos do que construind­o uma hidrelétri­ca absurda e destruindo povos ribeirinho­s.

‘NUNCA IMAGINEI QUE IRIA VER TANQUES NAS RUAS DO RIO’

Como vê o radicalism­o e a polarizaçã­o política atual?

O radicalism­o começou há algum tempo, né? Desde que fomos separados em “nós” e “eles”. Ia dar nisso. Não é surpresa que ia dar Lula e Bolsonaro. A luta armada foi cantada de verso em prosa. Uma amiga minha de 20 anos brigou comigo porque eu disse que achei interessan­te uma conversa entre Fernando Henrique Cardoso e Jô Soares, que não tinha a ver com política. Ela me desacatou no Instagram e não pegou no telefone para me ligar. Passei dias mal. Eu sou de um tempo em que política se fazia com discussão. Em que o Estado democrátic­o era uma conversa dos opostos. Hoje é um ódio correndo as escadas, para defender pessoas e partidos que estão se lixando para nós. Tem o mensalão, o canecão, o garrafão... Eu não sei em quem vou votar.

‘O CÍRIO TEM UM BAILE LGBT. A FÉ NÃO É EXCLUSIVA, É INCLUSIVA’

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DANIELA RAMIRO/ ESTADÃO

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