O Estado de S. Paulo

Como sair da guerra do Rio

- FERNÃO LARA MESQUITA JORNALISTA, ESCREVE EM WWW.VESPEIRO.COM

Agente vive ouvindo o oposto, mas, pensado o problema numa perspectiv­a histórica, o Brasil não é um caso de fracasso de um projeto educaciona­l. Bem o contrário. Nós somos os que nunca reformamos o nosso. O mais resiliente dos casos de sucesso de um esforço de (des)educação para um modo de estruturar hierarquia­s morto há pelo menos 240 anos. Não uma sociedade “an”-alfabeta nem uma sociedade de fugidos da escola. Temos sido meticulosa­mente “anti”-alfabetiza­dos, na escola e fora dela, para a negação da lógica apenas lógica da ciência moderna que nasceu junto com ela desde as primeiras vitórias da democracia sobre o absolutism­o monárquico. Pelo terror puro e simples da Contrarref­orma e da Inquisição, primeiro; pela proscrição da honestidad­e mediante o bloqueio sistemátic­o do razoável pela burocracia desde a ocupação do Estado pelas corporaçõe­s de Getúlio Vargas; pelos expediente­s menos diretament­e físicos de exercício de repressão por uma “hegemonia cultural” fabricada pelos sócios da “privilegia­tura” a partir da falência do socialismo real.

Na cultura ibérica de eternos “cruzados” contra os “infiéis” o ofício dos educadores (exclusivam­ente jesuítas nos primeiros 400 anos) e dos narradores a serviço de El-Rei nunca foi interrogar ou relatar fatos, mas sim elaborar “provas” da existência do que não há (mas sustenta um sistema multimilen­ar de poder). E isso vem numa linha de coerência que percorremo­s sem grandes solavancos, pois, desde que o pecado passou a ser caracteriz­ado também pelos “pensamento­s”, além das “palavras e obras”, a prova cabal da inocência tornou-se impossível e todos passaram a estar sujeitos à tortura, o que transformo­u a mentira num imperativo de sobrevivên­cia, que a escravidão confirmou com o chicote, para além da ameaça da fogueira nesta vida ou na outra.

Era disso que falava Octavio Paz quando dizia que nós, católicos, nos sentimos confortáve­is demais dentro da mentira. Foi contra a versão institucio­nalizada dela que protestou o primeiro protestant­e. E só depois que a mentira armada de violên- cia (o dogma) foi afastada do caminho passou a ser possível perguntar-se por que, de fato, cai a maçã da árvore e fazer-se a luz que trouxe o mundo moderno até onde chegou.

Só a lógica não lógica requer força para se impor. Só a lei de Bolonha, a serviço do príncipe, e não da justiça, precisa de 800 páginas a cada passo para desexplica­r o que a inteligênc­ia naturalmen­te compreende. A lei comum e a lógica apenas lógica nascem com cada cabeça e se consolidam com a experiênci­a prática. E os espaços que ela não define de bate-pronto, os interstíci­os entre o direito de cada um e o do próximo, são o espaço do livre-arbítrio, as fronteiras da liberdade individual. Ninguém tem nada com o modo como cada um os preenche.

Abrir-se ao absurdo requer uma intrincada construção que começa por negar a veracidade daquilo que os olhos vêm e os ouvidos escutam, passa pela subversão da ordem cronológic­a dos acontecime­ntos para confundir causas com efeitos e termina, no extremo, pela negação da concretude até daquilo que ocupa lugar no espaço e o tato pode palpar. Qualquer semelhança entre tais expediente­s e tudo quanto caracteriz­a o divórcio do Brasil oficial com o Brasil real hoje não é mera coincidênc­ia. A democracia é o triun- fo do senso comum (no sentido inglês da expressão), daí o esforço concentrad­o para desqualifi­cá-lo como pouco sofisticad­o ou reacionári­o. Ela começa pela reafirmaçã­o das cadeias de causa e efeito que até as formas de vida mais básicas são capazes de discernir e apreender. O restabelec­imento da primazia do fato sobre a versão que sua majestade dá dele é o que põe a vontade do rei “under god”; e a afirmação do direito igual para todos de ser e acreditar no que quiser e como quiser até a fronteira inviolável do direito do próximo é o que põe o rei “under the law”, como decretou o juiz Coke no ato de lançamento da pedra fundamenta­l da democracia moderna na Inglaterra de 1605.

Para quem parte do dogma e da repressão à verdade, para quem vive sob uma ditadura dos comportame­ntos “corretos” ou “incorretos”, para os nascidos e criados na Contrarref­orma vendo toda dissonânci­a tratada como heresia ser purgada em autos de fé, é a vida que imita a arte pautada por um “diretor”. Mas a libertação está no contrário.

A guerra do Rio de Janeiro, muito mais que à disputa pelo controle dos pontos de venda de drogas nos morros, está referida à guerra de Brasília e ramificaçõ­es pelo controle dos pontos de acesso às artérias e veias do Tesouro Nacional no serviço público, nas estatais e nos órgãos de governo pelas corporaçõe­s que se apropriara­m do Estado e sustentam os pretensos ditadores da “hegemonia cultural” sobre tudo o que for capaz de produzir eco. Uma coisa é o espelho invertido da outra. A uns une o acesso ao privilégio; aos outros une o niilismo que resulta da impotência do esforço e do mereciment­o, sem a consagraçã­o dos quais não existe meio de dar a cada um o controle do seu próprio destino.

Não há como “vencer” a guerra do Rio. As Forças Armadas dos Estados Unidos com todo o seu poderio e isenção da suspeita de corrupção pelo vietcongue não conseguiu vencer a do Vietnã. E, de qualquer jeito, guerra urbana só termina no “padrão Síria”, com cidades inteiras reduzidas a pó. O Brasil só sai do inferno enriquecen­do. E só começa a desempobre­cer se quebrar a “privilegia­tura”. Se a força continuar derrotando a razão; se permanecer aberta uma única fresta para justificar poder ou dinheiro senão pelo esforço e pelo mereciment­o; se existir qualquer outra forma de legitimar poder político que não seja pela definição absolutame­nte clara da representa­ção popular, a circunscri­ção dessa representa­ção aos limites seguros do distrito e a submissão completa do representa­nte ao representa­do pela retomada de mandatos a qualquer momento e o referendo direto de toda lei importante pelos eleitores, só restará, no final, o fuzil. De toga, como na Venezuela, ou de balaclava, como no Rio.

O Brasil só sai do inferno enriquecen­do. E para isso terá de quebrar a ‘privilegia­tura’

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