O Estado de S. Paulo

Os encantos de La Fontaine.

- Gilles Lapouge TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO

Como todos os países, a França tem suas especialid­ades. Todos os anos, no mês de outubro, há dois “retornos”: a volta às aulas e o “retorno literário”. Entre setembro e outubro, uma maré de novos romances, de poemas e de biografias desaba sobre as livrarias. Os críticos literários são engolfados por ela. Como ler 700 romances inéditos em quatro semanas? Desta forma, grande parte dos livros franceses levam muito tempo sem serem conhecidos, lidos por ninguém, amaldiçoad­os e enviados para as triturador­as de papel.

Este ano, em meio a todos os romances novos, infiltrou-se um livro inesperado: uma obra consagrada de um escritor de quatro séculos passados, La Fontaine, célebre na França, na Europa e mesmo na China, e do qual todos os escolares na França têm suas “fábulas” decoradas. Tudo levava a pensar que essa obra, sufocada sob 650 romances inéditos, fosse um fracasso e tivesse a mesma carreira rumo à pilha de livros empoeirado­s nas estantes das biblioteca­s universitá­rias. No entanto, nada disso. O La Fontaine de Erik Orsenna, é vívido, elegante e alegre. Rivaliza com os 700 novos romances e ficou até mesmo entre os mais vendidos do “retorno”.

As razões? Em primeiro lugar o autor desse livro, Erik Orsenna, é muito conhecido por seu modo leve de escrever. Em seguida, o “velho e simples La Fontaine” recebe um sopro de juventude. Ele pertence ao século 17, nos tempos de Luís XIV, esse rei majestoso que chamamos de “Rei Sol” e que reinou do suntuoso Palácio de Versalhes a multidão de marechais, ministros, damas e cortesãs curvados ante sua Majestade. A glória de Luís XIV é favorecida por poetas geniais, como Jean Racine, magnífico, que faz reviver as figuras trágicas da antiguidad­e, Fedra ou Andrômaco, Berenice ou Tito. Como La Fontaine poderia rivalizar com tais gênios, ele que fala de corvos, de raposas ou de ratos e camundongo­s?

La Fontaine nasce no pequeno povoado de Champagne, Château-Thierry. Na escola, não se destaca. É indolente. Prefere correr pelos bosques e pescar nos riachos, mas seus professore­s gostam muito dele. “Bom rapaz, é humilde e alia a virtude à sabedoria”. Aos 20 anos não se sabe o que fazer com ele. É levado para um convento. Trata-se de um erro de “casting”. Não dá a menor importânci­a à salvação eterna. Prefere o campo, o orvalho das manhãs e os amigos.

Vai estudar em Paris, menos para ocupar seu cérebro que para beber, dar festas e seduzir as jovens. Em seguida, volta à província de novo, pois o pai lhe transmite seu cargo: “Maître des eaux e des forêts” (inspetor das águas e das florestas). Ele cuida das árvores, dos pântanos, das chuvas, das doninhas e das borboletas. Perfeito. Ele tem afinal uma profissão. De tempos em tempos, entra de novo no convento, dessa vez um convento feminino, em Reims, cuja superiora, que se chama irmã Gabrielle-Angélique, é mais bela que piedosa e proporcion­a emoções excepciona­is ao escritor.

Ele se casa. E corteja as jovens. Sua esposa chega à conclusão de que ele pode ter um amante. Esse amante é um amigo de La Fontaine. Tudo vai bem no melhor dos mundos, mas os habitantes de Château-Thierry estão chocados. O que faz esse “cornudo feliz”? A vida torna-se insuportáv­el para La Fontaine, que adota uma solução drástica. Vai ver o amigo:

– Senhor, será necessário que nos enfrentemo­s num duelo.

– Tem certeza?

– Tudo indica.

Então, os dois homens encontram-se em um campo com grandes pistolas. O amante atira. La Fontaine grita “Ai”. Os dois amigos e suas testemunha­s vão, de braços dados, beber champanhe na estalagem. Existência agradável para um homem preguiçoso que ama os animais, os lagos, as nuvens e as mulheres. Um único inconvenie­nte. Essa vida custa caro e La Fontaine precisa vender todas as fazendas herdadas do pai.

Será que Luís XIV, o Rei Sol, que subsidia os grandes escritores (Racine, Moliére, La Bruière...) irá socorrer La Fontaine? De forma alguma. Esse tipo é libertino demais, molenga demais e livre demais para ser admitido entre os “cortesãos” que fervilham no Palácio de Versalhes. Pode ser célebre, mas não tem um brasão de nobreza.

Ele se apresenta à Academia Francesa. É rejeitado porque, além de suas fábulas serem ingênuas e inocentes, publicou contos que ofendem o pudor. Serão necessária­s grandes maquinaçõe­s para que ele seja enfim eleito para a Academia. Não se torna rico, entretanto. La Fontaine é essa combinação explosiva: às vezes acadêmico e ilustre, mas “vestido com negligênci­a”, preguiçoso e pobre como Jó.

Esse pobre escritor que alguns, como Orsenna, consideram o melhor poeta francês. E Victor Hugo? E Baudelaire? E Rimbaud? Em todo caso, se igualam. Sua voz é única. Na literatura do glorioso, solene, nobre e distinto “Grand Siècle” ele se fez ouvir, numa voz fresca como o orvalho primaveril: histórias curtas e simples, contadas como em confidênci­a, maliciosas e ternas e que chamam todos os animais da floresta. Versos belos como uma “escola no campo”, simples como um bom dia e de um virtuosism­o linguístic­o ímpar.

“Dois pombos se amavam com ternura, Um deles entediado em casa,

Ousou o suficiente para uma loucura: Uma viagem a um país distante”

Ou então: "A esposa do Leão morreu. Logo todos vieram correndo

Para cumprir um dever junto ao Príncipe De acatar respeito às convenções"

Ou então

"Do palácio de um jovem coelho,

Dama Doninha, uma bela manhã Toma-o para si. É uma esperta "

E esses “contos” que no século 17 foram considerad­os tão repugnante­s que La Fontaine foi punido? Eles são pouco conhecidos até hoje. Orsenna publica um. Ele vem na mesma tinta refinada e maliciosa que as Fábulas. Eis aqui a descrição de uma “boa irmã”:

“Humor gentil, simpática em corpete,

E mesmo estando apenas no seu aprendizad­o, Bela demais. Assim, ele foi invejado por duas razões,

Sua amante e seus encantos” etc...

E o epitáfio que Jean de La Fontaine escreveu, caso morresse:

“Jean se foi como veio,

Devorou os fundos como os rendimento­s Dispôs dos tesouros, coisas pouco necessária­s. Quanto ao seu tempo, ele soube como gastar. Em duas partes o transformo­u nas quais queria passar Uma dormindo e outra sem nada fazer”. /

Durante o auge do período de lançamento­s literários na França, Erik Orsenna escreve sobre o lendário e libertino autor de fábulas do século 17

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ESTAÇÃO LIBERDADE Infantil. Ilustração de Marc Chagall (1887-1985) extraída do livro ‘Fábulas de La Fontaine’
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HYACINTHE RIGAUD/1690
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EM BUSCA DE WATERSHIP DOWN
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LA FONTAINE: UNE ÉCOLE BUISSONIÈR­E

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