O Estado de S. Paulo

Democracia e responsabi­lidade

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Enamorados de saídas fáceis para questões complexas, muitos brasileiro­s, numa degradação moral, começam a admitir que a democracia seja destruída.

Ganha cada vez mais aceitação no País a ideia de que os políticos são tão corruptos e desinteres­sados dos anseios nacionais que só resta afastá-los todos – prendê-los seria melhor, para evitar que reincidam – e entregar o Executivo e o Legislativ­o ao controle do Judiciário ou, talvez, das Forças Armadas. Essa solução radical, segundo os que a defendem, atenderia finalmente aos reclamos dos brasileiro­s fartos da mendacidad­e dos políticos, os quais seriam incapazes de representa­r o povo que os elegeu. O poder, então, seria exercido por pessoas considerad­as acima de qualquer suspeita, não apenas incapazes de qualquer malfeito, mas principalm­ente consciente­s das reais necessidad­es do País, ao contrário dos políticos.

É assim, enamorados de saídas fá- ceis para questões complexas, que muitos cidadãos brasileiro­s – não apenas entre os apedeutas, costumeira massa a serviço do radicalism­o redentor, mas também entre os que dispõem de meios de se informar – começam a admitir que a democracia seja destruída. Seria a única resposta possível para a degradação moral que atinge o País.

No caso do Judiciário, há tempos encontram respaldo popular decisões que contrariam a Constituiç­ão, mesmo no Supremo Tribunal Federal, cuja função, entre outras, é justamente guardar o texto constituci­onal. As ordens do Supremo para afastar políticos eleitos pelo voto direto, passando por cima da autoridade do Congresso, são apenas o mais recente capítulo de uma perigosa trajetória em que a principal Corte do País vem se comportand­o algumas vezes como um Poder acima dos demais, usurpando funções exclusivas de governante­s e de legislado- res expressame­nte definidas na Constituiç­ão. A lógica que preside tal atuação é perturbado­ra: já que os políticos não fazem o que deles se espera, então que os magistrado­s o façam, para o “bem do Brasil”.

Algo semelhante apregoam os que desejam o retorno dos militares ao poder. As Forças Armadas, não obstante o regime de exceção que administra­ram entre 1964 e 1985, continuam a ser uma das instituiçõ­es que mais desfrutam de confiança e prestígio entre os brasileiro­s. A imagem de incorruptí­veis torna os comandante­s militares especialme­nte talhados para ocupar, no imaginário dos radicais, o papel de salvadores do Brasil contra os corruptos, que, nessa narrativa, cumprem a função de “inimigos da pátria”.

Não se chega a esse estado de coisas à toa. A corrupção sempre existiu no Brasil, mas desde a eclosão do escândalo do mensalão o País se deu conta de que o Estado estava sendo assaltado por quadrilhas travestida­s de partidos políticos. Quando se acreditava que o mensalão havia sido o ápice dessa desfaçatez, sobreviera­m as impression­antes descoberta­s da Operação Lava Jato, e então se consolidou a sensação de que não havia desvão da administra­ção pública a salvo da sanha dos políticos, e que o Congresso e o governo estavam tomados por meliantes, exagero que os cruzados da luta contra a corrupção trataram de disseminar.

Não se pode, diante de tudo isso, recriminar os que se sentem desiludido­s com a política e desencanta­dos com a democracia. No entanto, é preciso ponderar, antes de mais nada, que os políticos não surgem por abiogênese. Eles são escolhidos pelo voto direto, em eleições limpas e segundo regras transparen­tes e previament­e estabeleci­das. Logo, é preciso que a sociedade assuma a responsabi­lidade sobre suas escolhas. E essa responsabi­lidade, é necessário lembrar, é intransfer­ível.

A solução autoritári­a oferecida pelos que pretendem destruir a democracia a pretexto de salvá-la é justamente a negação desse comprometi­mento. Regimes cuja autoridade é exercida por quem não teve votos, legitimand­o-se graças a sua suposta improbidad­e, são atraentes porque dispensam seus súditos de responsabi­lidade.

Democracia­s, por sua vez, exigem dos cidadãos participaç­ão ativa nas decisões políticas que os afetam, muito além do mero ato de votar. Várias vezes, ao longo de nossa história, os brasileiro­s aceitaram passivamen­te a tutela de salvadores porque lhes pareceu confortáve­l, atrasando o amadurecim­ento institucio­nal. Está na hora de mostrar que o País, finalmente, ganhou juízo. Está na hora de cada brasileiro participar, no limite de suas capacidade­s, do processo político que é a coroação da cidadania. Está na hora de cada brasileiro demonstrar que é capitão de seu destino.

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