O Estado de S. Paulo

Paul Auster é indicado ao Man Booker por seu novo romance, 4321.

- Martim Vasques da Cunha ✱

4321– o novo, gigantesco e mais ambicioso romance de Paul Auste r–éa resposta a um acrítica implacável feita contra ele pelo príncipe dos resenhista­s, o inglês James Wood. Em um texto publicado na revista The New Yorker, Wood discorreu sobre Invisível, então a fábula mais recente de Auster, publicada em 2010. Nele, afirmou que era o livro de um autor que não sabia escrever uma linha correta em inglês, e, ao se acostumar com as fórmulas possíveis para encantar o leitor, esqueceu-se de fazer uma literatura ousada.

A princípio, Auster, o mais forte entre os seis concorrent­es do Man Booker Prize, que será entregue dia 17, não se mostrou atingido pela diatribe. Em uma carta endereçada ao amigo de letras J.M. Coetzee, publicada no volume Here and Now (2013), o americano agradece ao sul-africano pelas palavras de conforto logo após este último ter afirmado que Wood foi um canalha, mas em seguida afirma ao colega para não se preocupar pois “o que eu posso fazer com alguém que, como diz o nome, já tem o seu fim garantido pelos cupins?” (Em inglês, Wood significa madeira ou carvalho).

O chiste é bom, mas a verdadeira réplica seria muito melhor. 4321, que será publicado pela Companhia das Letras em maio de 2018, é um tijolo de 866 páginas que, além de ser um tapa na cara da acidez de Wood, é também uma espécie de síntese das obsessões literárias de Auster. Estão ali todos os ingredient­es da obra do “bardo do Brooklyn”: a reflexão sobre a amizade e a escrita que fez de Leviatã (1992) um evento para pessoas já iniciadas na grande literatura; a obsessão pelas coincidênc­ias da vida, disfarçada­s de acaso ou de destino, que marcou os primeiros livros que lhe deram fama, como A Trilogia de Nova York (1987) e Palácio da Lua (1989); o questionam­ento a respeito da identidade em um mundo onde o ser humano é fraturado ao extremo – o eixo de O Livro das Ilusões (2002); a delicadeza da sua obra poética, escrita no início da carreira literária; e a reflexão sobre a própria biografia, repleta de incidentes pitorescos, algo que emocionou quem leu A Invenção da Solidão (1982).

Com 4321, temos algo a mais – e não se trata apenas de uma questão de tamanho (ou de triunfo entre seus pares, pois foi indicado ao Man BookerP rize de2017,jun toco mG eorg eS aund erse AliSmith ). Quem lê acrítica feita por Wood a Auster percebe que as suas observaçõe­s giram em torno de um único ponto: o ressentime­nto do resenhista – ensaísta talentoso, mas romancista medíocre – sobre o fato de que, por mais defeitos que Auster possa ter (e ele os tem ), afluência narrativa do norte-ame ri canoé algo ímpar na literatura contemporâ­nea. Ao contar não apenas uma vida, mas as quatro vidas paralelas do jovem Archie Ferguson nas turbulenta­s décadas de 1950 e 1960, o autor de A Música do Acaso (1990) acrescenta um vigor dramático que não existia nos livros anteriores – impulsiona­do por longas e arriscadas sentenças influencia­das por Thomas Bernhard e László Krasznahor­kai (aliás, dois ídolos no panteão de Wood) – equeim pressiona por Auster se rum romancista que, com seus 70 anos, já deveria estar no crepúsculo da existência.

A estrutura experiment­al de 4321 é também uma homenagem de Austera outro romancista que sempre o fascinou – o francês Georges Perec, objeto de um dos melhores ensaios escritos pelo americano, retirado da sua formidável coletânea de não-ficção, A Arte da Fome (1992). Assim como Perecem seu épico A Vida Modo de Viver (1982), Auster brinca com as permutaçõe­s e as variações de uma única equação: Quais foram as vitórias e os fracassos na “educação sentimenta­l” de Archie Ferguson (que teve seu nome de família determinad­o por uma anedota casual, quando o seu bisavô chegou aos EUA como imigrante russo)? E mais: Oque o rapaz fez para frutificar avocação de escritor? Graças a este artifício, temos quatro existência­s que, ao mesmo tempo, são profundame­nte diferentes e, por incrível que pareçam, semelhante­s. Num aparte testemunha­mos u mF erguson quen ãoseim porta coma sua herança judaica; ou troques e impor taco mela até demais; depois, lemos sobre um Ferguson apaixonado por sua prima, Amy; então, temos um Ferguson bissexual; e assim vamos até o momento em que cada versão encarará, sem melindres, o acaso que surge com seu verdadeiro rosto – a morte.

É neste ponto que a virtude narrativa da obra de Auster, por mais irregular que ela seja, se mostra essencial para os nossos tempos. No fundo, ela é uma profunda meditação sobre o fenômeno das in cronicidad­e que afeta cada um de nós. Divulgada, em 1952, pelo psicólogo C. G. Junge o físico alemão Wolfgang Pauli, a sincronici­dade é um conceito que tenta explicar como fatos sem uma relação aparente de causa-e-efeito têm, na verdade, um princípio ordenador, que traz um sentido para a confusão do mundo em que vivemos. Auster reflete sobre isso em todos os seus romances, mas é na pequena autobiogra­fia O Caderno Vermelho (1995), na qual relata incidentes significat­ivos de sua vida, mostrando como todos estamos conectados de uma forma ou outra, que ali revela-se o trunfo de sua habilidade como escritor – e também o seu impasse.

Não setra tadea firmar o eterno clichê alá Nova E rad eque o acaso, o destino ou a contingênc­ia são os personagen­s centrais dos seus livros. É muito mais doque isso: asinc roni ci da deé o mistério que move cada uma das suas histórias – algo evidente no modo como Auster costurou as quatro trajetória­s de Archie Ferguson em 4321. Cada Archie apresentad­o escuta poemas que passam por sua cabeça e depois desaparece­m, encontra-se com personagen­s secundário­s em uma história e tornam-se importante­s em outra, e sofre tragédias duradoura sem um momento eque logo em seguidas e transforma­m em piadas. Não existe um motivo aparente que ligue esses acontecime­ntos – ou talvez exista apenas uma “multidão de causas”, incompreen­sível aos nossos olhos racionalis­tas.

Por meio do seu talento romanesco, Auster quer embaralhar nossas expectativ­as de encontrarm­os alguma “explicação”. Contudo, tal dom é também um infortúnio. Ao buscar uma conexão que faça todas as suas histórias terem um nexo, ele fica indeciso entre retratara brutalidad­e dos “acasos permanente­s” – como a morte, o sexo e o enigma da criação literária –, ou descobrir um sentido postiço no curso histórico do seu próprio país. Em 4321, infelizmen­te, ele faz a última opção. Nas quatro vidas de Ferguson, a História dos EUA é exibida como se fosse o desfecho pleno do que Roger Kimball chamou de “a interpreta­ção progressis­ta da natureza humana ”– uma caracterís­tica marcante de que mé filiado ao Partido Democrata americano( comoé ocaso de Auster), e que, apesar da boa intenção, sempre será uma má culapara quem pratica agrande literatura.

Em todo caso, a narrativa de Paul Auster é poderosa demais para que ele seja devorado pelos cupins da ideologia política. No final de 4321, após o leitor terminar uma deliciosa odisseia com mais de 800 páginas, o fascínio com as coincidênc­ias é substituíd­o pela ilusão de que só a arte salva a quem se dedica a ela com todas as forças. Nada disso, porém, impede que o “acaso permanente” da morte domine as preocupaçõ­es de Archie Ferguson – e, claro, do próprio Auster. Eesteéoún ico fatoqu enemas in cronicidad­e consegue explicar. Depois de ter dado uma resposta à altura ao príncipe dos resenhista­s e de ter provado asim esmoque continua um mestre na arte da escrita, fica claro que, para quem meditou tanto sobre os desvios do destino, a única coisa permanente é contarmos a nossa história da melhor maneira possível – mesmo que ela não pareça ter sentido algum.

Aos 70 anos, o ‘bardo do Brooklyn’ é indicado ao Man Booker por ‘4321’, seu novo romance e uma resposta às ácidas críticas de James Wood

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VINCENT WEST/REUTERS Retorno. Após resenha negativa de James Wood sobre ‘Invisível’, Auster se espelha em ídolos do crítico para fazer o monumental ‘4321’
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4321: A NOVEL AUTOR: PAUL AUSTER EDITORA: HENRY HOLT & CO 880 PÁGS., US$ 32,50

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