O Estado de S. Paulo

Leandro Karnal

- LEANDRO KARNAL LEANDRO KARNAL ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

Conhecimen­to é poder e controle do conhecimen­to é sempre um projeto de poder.

Épossível dizer que os franceses inventaram o intelectua­l. Nem tanto a atividade, mas a palavra em si. O termo pode ter sido cunhado em 1864, em Chevalier des Touches, de Barbey d’Aurevilly. O conceito ressurgiri­a em 1879 em Guy de Maupassant e, em 1886, seria empregado por Léon Bloy. As informaçõe­s são fornecidas por um exemplo de intelectua­l, Umberto Eco, no livro Papé Satàn Aleppe (Record, 2017).

O termo só ficou corrente com o famoso caso Dreyfus. O militar francês de ascendênci­a judaica, Alfred Dreyfus, foi acusado de espionagem pró-império alemão. Em processo duvidoso, foi condenado e exilado na Ilha do Diabo. A discussão sobre sua culpa galvanizou a França entre 1894 e 1906, junto a debates acalorados similares ao Brasil de hoje nos quesitos política ou exposições de arte. Tocado pelo “affair”, Émile Zola escre- veu um célebre artigo intitulado Eu acuso ( J’Accuse), em 1898. A ação de Zola a favor da inocência de Dreyfus marcou, em definitivo, o modelo de intelectua­l atuante em grandes causas públicas.

Bruxuleia a chama do erudito humanista, trancado no scriptoriu­m e mergulhado em volumes de erudição. Refulge a ação do intelectua­l, um dinâmico vulcão de ideias e de atitudes. Jean-Paul Sartre, ao tomar posição pública sobre episódios como a guerra na Argélia, é herdeiro da concepção do filósofo-jornalista, com raízes em Voltaire no século 18.

O conceito foi expandido pela reflexão do italiano Antonio Gramsci, em especial em sua ideia de “intelectua­l orgânico”. O novo intelectua­l, o orgânico, “não pode mais consistir na eloquência, motor exterior e momentâneo de afetos e das paixões, mas numa inserção ativa na vida prática, como construtor, organizado­r, ‘persuasor permanente’, já que não apenas orador puro – mas superior ao espírito matemático abstrato”. A citação, retirada dos Cadernos do Cárcere, encontra-se no Dicionário Gramsciano (organizaçã­o de Guido Liguori e Pasquale Voza, editora Boitempo).

Gramsci dá, à esquerda, um sentido de missão transforma­dora que Marx já havia indicado no século anterior. Em polo político oposto, Thomas Sowell reclama, exatamente, da vontade intelectua­l de emitir opinião sobre tudo. Para o norte-americano, ser especialis­ta em algum tema não confere a ninguém a capacidade de emitir opiniões sobre tudo. Crítico do modelo que encontra em Noam Chomsky seu arquétipo, o livro Os Intelectua­is e a Sociedade é uma metralhado­ra giratória contra os resultados desastroso­s, para Sowell, da tentativa intelectua­l de guiar a opinião pública.

O que ocorreu nos últimos anos foi a difusão de um gramsciani­smo universal à esquerda e à direita. A tônica atual é “lacrar”, neologismo para encerrar uma discussão com argumentos retumbante­s. Escasseiam fontes de informação e abunda o fluxo subjetivo da minha consciênci­a. Emerge a doxa (a opinião) em milhares de blogs e memes. Tanto a direita como a esquerda estão empenhadas na missão civilizado­ra/destruidor­a.

O primeiro objetivo do esforço é óbvio. Conhecimen­to é poder e controle do conhecimen­to é sempre um projeto de poder. Há vários projetos em choque hoje no Brasil e muitas pessoas empenhadas na implantaçã­o do seu respectivo modelo.

O segundo é mais complexo. Aumentam os tradiciona­is gramsciano­s de esquerda com os novos (perdão pelo oxímoro) gramsciano­s de direita em meio à capilariza­ção do saber. Zola era um conhecido literato. Gramsci era renomado filósofo. Sowell é economista que passou por Harvard, Columbia e Stanford. Que esses nomes escrevam e falem é quase natural. A internet deu o estatuto de intelectua­l orgânico a todos que tiverem acesso à rede. É o eclipse do conhecimen­to em si e o despontar da militância catequétic­a.

Querem um exemplo? Um jovem estudante manda e-mail e diz que eu sou arauto do pensamento gramsciano de extrema esquerda. Pergunto o quanto ele explorou dos textos do filósofo sardo. Em mais dois e-mails estimulado­s pela minha curiosidad­e, descubro que ele não sabe, de fato, quem foi Gramsci e jamais leu uma linha do inimigo de Mussolini. Em algum lugar da internet, ele leu que gramsciano é toda pessoa crítica que não vota no candidato que ele considera bom. Quero enfatizar: mesmo não dispondo de uma pesquisa empírica, suspeito que a ignorância das fontes seja comum a gramsciano­s de esquerda e de direita. É o velho axioma: existem mais nietzschia­nos do que leitores de Nietzsche, mais marxistas do que estudantes de Marx e mais tomistas do que versados no teólogo dominicano.

Volto a Umberto Eco. A internet possibilit­ou tudo isso. Junto desse novo conceito de intelectua­l, surgiu o ressentime­nto contra o erudito que levou duas décadas ou mais na formação lenta e paciente. Não apenas estamos superficia­is, porém nossa subjetivid­ade narcísica nos tornou muito arrogantes. Ouço, a cada curva das redes, o grito de “vá se tratar” diante da discordânc­ia de uma ideia. Se você não concorda comigo, é sinal claro de que é um imbecil e, mais, deve ter problemas mentais, o que me alça à confortáve­l posição de ser a única criatura racional e equilibrad­a da Via Láctea. Terrível solidão do deserto da vaidade!

Eu acuso, como Zola, que todos nós, intelectua­is ou não, estamos atacados de uma demência grave prevista pelo Alienista de Machado. Está dando vontade de dormir e acordar daqui a cem anos para ver se passou o delírio. Bom domingo a todos vocês!

Conhecimen­to é poder e controle do conhecimen­to é sempre um projeto de poder

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