A falácia que cerca o debate sobre as armas de fogo
Suicídio, homicídio, assassinato em massa e acidentes com armas de fogo são problemas distintos, que exigem soluções específicas. Parece óbvio. Mas tudo se confunde quando está em jogo o controle das armas. Depois de tragédias como a de Las Vegas, grupos de pressão exaltados exibem estatísticas prontas, sob medida para defender posições irredutíveis. Os fatos sempre são mais complexos.
O americano é, de longe, o povo mais armado do mundo, com 101 armas de fogo para 100 habitantes – há 4 em Israel, 9 no Brasil, 11 na Venezuela, 32 na Alemanha e 35 na Arábia Saudita. Mas não existe relação estatística entre esse número e a taxa de mortes por tiros (para cada 100 mil habitantes: 0,3 ao ano na Arábia Saudita, 1 na Alemanha, 1,3 em Israel, 10,5 nos Estados Unidos, 21,9 no Brasil e 50,5 na Venezuela). Assassinatos em massa como em Las Vegas são um fenômeno quase exclusivo dos americanos. Mas o maior problema lá é outro: o suicídio, causa de dois terços das mortes por tiros. No Brasil é o homicídio, responsável por 86%. Controlar o acesso às armas pode reduzir acidentes e suicídios. Mas o impacto na violência criminal é menos evidente – o crime organizado raramente tem dificuldade de obtêlas. Tudo depende do tipo de controle e da qualidade da implementação.
“Pesquisas de qualidade sobre a associação entre adoção ou revogação de legislação a respeito das armas de fogo (em vez de apenas avaliar as leis) levariam a uma compreensão melhor do tipo de intervenção que tem mais chance de funcionar”, diz o epidemiologista Julian Santaella-Tenorio, da Universidade Columbia, na maior revisão recente de estudos sobre o tema. Para a sociedade, o risco de condenar ou absolver as armas como um todo é o mesmo: ignorar o problema de fundo, aplicar uma solução parcial (ou errada) e até agravá-lo.